Rafael Freitas, Historiador Alvoradense, Membro fixo do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata e Comunicador da Rádio Comunitária a Voz do Morro
Revolta da Chibata
O historiador
não deve ser subserviente ao vocabulário e às lógicas de
apreensão do mundo presentes nas fontes, visto que a História deve
conter a crítica das ilusões que existem em todas as épocas.
Logo, essa ideia poderá ser muito válida para interpretarmos a
Revolta da Chibata, cuja fonte primária mais importante é a carta
de 22 de novembro de 1910, redigida por Francisco Dias Martins, que
poderá nos dar muitas pistas sobre esse fato histórico durante a
movimentada Primeira República, quando os negros trabalhadores
repetiam seus ancestrais ao perceberem que viviam na escravidão e,
como aqueles, reagiram com potência a nos causar motivação, nos
contextos atuais, para novas revoltas populares.
A Revolta da Chibata, liderada por
João Cândido, aconteceu no Rio de Janeiro, pouco depois do fim da
escravidão com a Lei Áurea de 1888. Com a dignidade de um
mestre-sala dos mares, o Almirante Negro viajava pelo mundo, pois era
membro da Marinha de Guerra brasileira, que sangrava em rubras
cascatas que jorravam pelas costas dos negros trabalhadores,
vitimados pelas chibatadas e outros castigos. Ressaltemos o fato de
que não houve protesto popular em apoio aos revoltosos, que lutaram
sozinhos, inclusive entre si, contra as suas circunstâncias.
Mesmo assim, obtiveram vitórias.
Os bons ventos financeiros no Brasil
fizeram o governo realizar uma modernização radical da marinha de
guerra, com compra de navios, bem como viagens para treinamento de
marujos e oficiais à Inglaterra. Em primeira instância, isso
resultou em melhora técnica e científica, contudo uma situação de
insubordinação foi crescendo e fez parte da gestação de um
movimento. Foi alugado um sobrado na Rua dos Inválidos 71, onde
vários marinheiros reuniam-se diariamente para articulação da
revolta: Revolta dos Marinheiros, Revolta da Chibata, Revolta dos
Negros Trabalhadores, tratados todos como escravos. Foram 4 dias de
rebelião, na primeira revolta no mês de novembro.
Em seguida, no dia 10 de dezembro de
1910, aconteceu a segunda revolta, todas durante o governo do
presidente Hermes da Fonseca, na República do Café com Leite. Era
mal visto um presidente “fazer” o seu sucessor e o voto pouco
valia nas decisões eleitorais: mandavam mais o apoio das oligarquias
regionais, do governo e da polícia. Assim, a infelizmente ainda
muito pouco estudada, campanha civilista foi uma inspiração para os
marinheiros, conforme documentos produzidos pelos oficiais; nas suas
opiniões, a campanha civilista trouxe abalo à disciplina.
Destaquemos que o fato imediato – ou o estopim da Revolta – foi o
castigo do marinheiro baiano Marcelino Rodrigues Menezes, condenado a
250 ou 385 chibatadas no encouraçado Minas Gerais; assim afirma a
História “profana” ou materialista, afinal tanto todo homem,
quanto toda mulher, é formado pelas circunstâncias.
Nesse sentido, voltemos à carta de
1910, porquanto ela nos mostra os limites do movimento que gerou a
Revolta da Chibata. Os marinheiros rebelados e liderados por João
Cândido, a bordo de encouraçados recém adquiridos, com seus
canhões apontados para a sede do governo federal, reivindicavam o
fim dos castigos físicos e melhores condições de trabalho. Houve
casos de marinheiros açoitados por quinhentas e até oitocentas
chibatadas, uma vez que havia duas legislações que permitiam as
torturas como punição, eram os Artigos de Guerra e os Códigos
Penal e Militar da Armada.
Não obstante, inúmeras vezes os
limites de chibatadas eram ultrapassados e podiam levar à morte do
trabalhador. Os marinheiros não aguentavam mais os castigos
corporais, o trabalho excessivo nas embarcações, os vencimentos
muito baixos – além da péssima alimentação – e começaram a
fazer diversas ações para melhorar as suas condições de vida.
Todas essas iniciativas foram em vão, de tal modo tiveram que partir
para as ameaças de bombardear a cidade do Rio de Janeiro, porém
somente as ameaças eram insuficientes, logo agiram e fizeram o que
ficou conhecido na nossa História como a Revolta dos Marinheiros ou
a Revolta da Chibata.
O conflito
começou como uma luta de negros contra brancos, ou dos que
trabalhavam contra os que mandavam. Lê-se na carta: “[...] tendo
a seu bordo prisioneiros todos os Oficiais, os quais têm sido os
causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa [...]”. Os
rebeldes reconheciam que a troca da monarquia para a república não
foi o necessário para torná-los cidadãos, em seguida solicitando
ao presidente que as leis republicanas chegassem a eles: “[...]
mandamos esta honrada mensagem para que V. Exª. faça os Marinheiros
Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República
nos facilita [...]”. Solicitavam, ainda: “[...] retirar os
oficiais incompetentes e indignos de servir à Nação Brasileira”.
Os marinheiros rebelados, nas suas palavras, estavam dentro dos
limites do nacionalismo e da democracia liberal, que estava sendo
construída em nosso país.
Em outro viés, as frases dos
documentos, como as palavras em depoimentos, mostram-nos as ilusões
dessa época sobre ela mesma. Os
marinheiros tiveram contatos com armadas de outros países que não
tratavam seus marujos como se fossem escravos – João Cândido se
alistou na armada brasileira em 1895 e estava entre esses marinheiros
que conheceram diversos países. Em seu retorno, criou um comitê
formado pelos marinheiros para organizar uma revolta e formar comitês
nos outros navios para realizar o motim em uma data definida, após
diversas reuniões. O Almirante Negro tornou-se um Oficial, inverteu
a “pirâmide social” dentro da armada brasileira e, durante
quatro dias, os negros comandaram os navios de guerra, fazendo o
estado brasileiro abolir de uma vez por todas a chibata e outros
castigos físicos na armada.
Seguidores de João Cândido, de
Augusto Malta (Fonte: Rio de Janeiro 1900-1930, G. Ermakoff Casa
Editorial, 2003)
Outro fato a ressaltarmos é que, com
o tempo, aumentou a desconfiança da oficialidade nos próprios
marinheiros que não aderiram à revolta contra a chibata. No segundo
dia do novo regime republicano, em 16 de novembro de 1889, um decreto
extinguiu os castigos corporais na Armada, mas as mudanças sociais
na História do Brasil não ocorreram por meio de decretos. Em cinco
meses, o governo provisório baixou outro decreto, retomando os
castigos corporais.
As bandeiras vermelhas e lenços da
mesma cor eram símbolos da rebelião de 1910, representação fiel
do vermelho do sangue que pingava a cada punição com açoites nos
trabalhadores negros, de novo escravizados, agora durante a
República. As ordens do presidente Hermes da Fonseca para reprimir
militarmente a rebelião foram recebidas com má vontade pela
marujada que não optou pela revolta, tanto que muitos sabotaram toda
reação do governo. Esses marujos, com essa atitude solidária,
demonstraram que a Revolta da Chibata foi influenciada por uma
consciência de classe que estava sendo constituída nos
trabalhadores no Brasil. Uma rebelião vitoriosa, embora acompanhada
de derrota dos rebeldes, pois a oficialidade, mais uma vez, estava
sedenta por vingança: transformou a anistia numa armadilha. Muitos
marinheiros foram mortos na tentativa de acabarem com a escravidão
na esquadra, navios foram desarmados, canhões desativados e marujos
intimidados.
No dia 27 de novembro foi decretada
pelo presidente marechal uma permissão para dar baixa em marinheiro
que fosse considerado indisciplinado (um eufemismo para rebelde).
Francisco Dias Martins foi um dos primeiros marinheiros a ser
expulsos e, em 09 de dezembro, navios da Revolta da Chibata já
estavam desarmados. O Scout Rio Grande do Sul foi enviado para Santos
para reprimir uma greve em um navio de marinha mercante. Uma parte do
novo conflito terminou antes da meia noite, mas, no batalhão naval,
ele seguiu acontecendo. A História estava movimentada, às 10h30min
do dia 09 de dezembro, duas companhias dão “vivas à liberdade”
e “morras ao carrancismo” (vide carranca, pessoas que vivem do
passado, no caso, escravista). Foi o início da segunda etapa da
Revolta da Chibata, quando os marinheiros demonstraram-se relutantes
quanto à consciência de classe.
De tal modo, aparelhos telefônicos
foram inutilizados, disparos eram dados, apagou-se toda iluminação,
rebeldes tomaram rapidamente a entrada dos edifícios, soltaram os
presos, e armaram-se. Em resposta, o batalhão naval foi bombardeado
por dez horas no dia 10 de dezembro, sem respeito à bandeira branca.
Foi um golpe contra os anistiados e uma busca por motivos para
aprovação do estado de sítio, por meio de repressão ilegal aos
ex-rebeldes que foram contra essa segunda fase da Revolta da Chibata.
A proposta de nova revolta não foi aceita pelo Minas Gerais, São
Paulo e outros navios; o próprio Almirante Negro não aceitou
participar e, quando essa revolta estourou, os ex-revoltosos
dispararam contra os colegas rebelados.
Em 11 de dezembro de 1910 João
Cândido foi preso e cerca de 200 marujos foram expulsos no ano
seguinte. No Massacre da Ilha das Cobras, aconteceram 16 mortes,
apenas Zanot e João Cândido sobreviveram. O Caso Navio Satélite,
foi outro fato histórico demonstrando a reação do governo contra
os negros trabalhadores da marinha brasileira rebelados contra a
chibata e péssimas condições de trabalho, sobrou fuzilamento,
assassinatos, foi um capítulo insensato das jornadas de 1910.
A Revolta da
Chibata nos mostra que, conquanto não tivesse um projeto de mudança
social, ou econômica, ela provocou uma inversão na hierarquia, uma
anástrofe das relações entre quem trabalhava e quem mandava na
Marinha Brasileira durante aqueles dias memoráveis. Todavia, nada
disso poderá ser encontrado em fontes primárias dos rebeldes sobre
os acontecimentos que eles foram protagônicos, a exemplo da carta de
22 de novembro de 1910.
Por conseguinte, a ordem “normal” na formação social brasileira
durante a Primeira República foi a de lutas sociais, por todas as
regiões no país.
Sugestão de
leitura sobre a Revolta da Chibata:
FILHO, Mário
Maestri. 1910:
A Revolta dos Marinheiros. São Paulo: Global, 1982.