domingo, 29 de março de 2020

"A necessidade quase literal de mastigar o patriarcado"



Márcia Antunes
Artista visual, arte terapeuta, educadora e artesã, bordadeira, ex-punk, reikiana, atéia, motoqueira, viciada em livros, chá e filme francês







O mundo foi pensado e construído por homens.

             No início dos tempos, as mulheres eram veneradas pela magia da gestação. Eram seres preciosos e tratadas como divindades. Os grupos sociais mantinham sua harmonia exatamente por serem centrados nos valores deste sagrado feminino.

          Com a mudança da vida nômade para um lugar mais próximo das plantações os homens puderam observar mais de perto o ciclo de vida dos animais e perceber que a proximidade com o macho fazia com que as fêmeas pudessem dar crias. Daí passam a perceber a sua própria participação na fecundação das mulheres, fato até então ignorado.
Até ali, as comunidades eram matriarcais, SEM domínio de qualquer gênero sobre o outro, totalmente igualitárias. (Bem fácil imaginar o que esta descoberta impactou).

       Em volta de suas plantações, os grupos precisaram defender seus territórios, valorizando e priorizando a força física masculina.

          Juntamos isso à descoberta da sua participação “fundamental” na gestação das mulheres, o poder masculino se sobrepõe ao das fêmeas.
Mais filhos significavam mais força de trabalho, que significava mais riqueza e conferia mais importância ao macho.

          Por conta do controle dos seus bens e de sua herança a filiação passa a ser igualmente importante e o homem passa a controlar a casa e a mulher que irá engravidar dele. As mulheres passam a ser vistas como incubadoras e mercadorias preciosas.
As relações que eram igualitárias passam a ser de controle e poder do homem sobre a mulher.

                Com o passar dos tempos as religiões ainda sacralizam  a união entre as famílias criando laços rígidos que legitimam este controle.
O que descrevi até agora não é lenda. É um super resumo de fatos históricos que comprovam e explicam a estrutura patriarcal do mundo, lá na sua formação. Sim, a coisa já começou torta.

                   São milhares de anos vivendo esta estrutura e ainda hoje podemos ver homens se defendendo de acusações com mais energia  do que usam para abrir a mente (e os ouvidos) às mulheres que tentam explicar atitudes machistas.
Entendo que possa ser um esforço imenso para um cara não se defender (ele foi criado pra isso); ou aceitar uma opinião que seja diferente da sua; ou, no mínimo, consumir materiais produzidos por mulheres.

                       Este mesmo cara que acha que chamar a mulher de “minha” deveria parecer ultra romântico aos ouvidos dela. E talvez, ela ainda nem perceba a armadilha que é se sentir “dele”.

                     Muitos caras bacanas realmente respeitam suas parceiras, são sensíveis às necessidades da relação etc, etc. Mas ainda assim recebem todos os benefícios de um mundo patriarcal. Não estão num lugar incômodo o suficiente para lutarem por uma mudança. Sei que isso pode parecer óbvio, mas não pra eles. Já pensam em mudanças mas ainda colhem os antigos e suculentos frutos do machismo.

                  Existe tanta coisa escrita sobre este tema que precisa ser debatida, que escrever sobre isso parece mais um lustre no ego do que uma contribuição real. Mas preciso ser didática.

              As feministas não odeiam homens (digo que não é sua premissa). Porque simplesmente o feminismo NÃO FALA DELES. Apenas estamos acostumados a um tipo de “educação” que prioriza a tolerância (palavra que abomino) e a doçura, como condição primeira do gênero feminino. Então, qualquer ação que fuja disso vai parecer “não feminina”.

                  Parece desrespeito pensar somente em si mesma quando sempre foi criada para relevar, pacificar, baixar a voz e ser suave em suas relações. A mulher nunca é algo EM SI. Parece que só existimos se relacionadas À ALGUÉM ou alguma coisa. 

             Desde pequenas recebemos brinquedos que reforçam a condição da família (futura). Realizando brincadeiras “adequadas” a nossa frágil condição, não somos estimuladas a acreditar em nossa voz. Somos ensinadas a focar no objetivo único de ter uma família. Para isso, iremos manter dietas, usar roupas, acessórios e objetos que nos coloquem em posição de luta com outras mulheres até que um dia, um ser magnânimo irá nos “escolher” para sua esposa. Então, passaremos a cuidar da casa e deste magnânimo ser.

                      Não sei tu, que está lendo, mas na minha cabeça isso não faz sentido algum!

             O nível de exigências imposto às mulheres é sempre alto demais. Aliás, é impossível! E será sempre! Pois isso mantém a grande olimpíada que é “ser mulher”.

           Confesso que explicar assim, mastigadinho este processo histórico cruel e estrutural, me deixa exausta. Porque este é apenas um dos vários papéis que eu, mulher,tenho que assumir diante de um mundo de homens acostumados a bater em seus peitos jurando que estão sendo injustiçados pela luta que afinal, nem foram convidados.

                   Sigamos lutando e, vez que outra, parando pra explicar o que deveria ser óbvio.







sábado, 28 de março de 2020

Quando o Lanterna Verde conheceu a pobreza.


Paulo Kobielski 
Licenciado em História, FAPA
Especializações em Filosofia e Sociologia, UFRGS
Organiza junto com Denilson Reis, o Dia do Quadrinho Nacional Alvorada, Dia Nacional do Fanzine Alvorada, Gibifest Alvorada, Mutação POA,

Dirigiu e co-roteirizou o filme “Fanzine Tchê: 30 anos de resistência”


Nas mais diversas sociedades, o homem vive de forma de desigual. Seja pela privação de necessidades básicas ao ser humano como alimentação, saúde e educação, seja pela falta de acesso aos bens de consumo. O estudo da desigualdade social no Ensino Médio permite conhecer problemas como pobreza e exclusão dentro de uma sociedade e entre as sociedades. Sabemos que as diferenças entre os indivíduos e os grupos sociais estão presentes em todas as sociedades, independente da nacionalidade ou época. O que faz diferença é a forma como olhamos essas desigualdades.

É importante salientar que existem diferentes tipos de desigualdade e nos mais diferentes níveis, que incluem aspectos políticos e econômicos, aspectos culturais e sociais, como é o caso das diferenças de acesso à educação e à cultura.

Para o sociólogo britânico Anthony Giddens, os benefícios da globalização não atingem a todos se configurando no que chama de “desigualdade global”:

Todavia, essas mesmas questões críticas relacionadas com a classe, o status e o poder existem em uma escala ainda maior no mundo como um todo. Assim como podemos falar de pobres e ricos, status elevado e baixo ou poderosos e impotentes dentro de um mesmo país, podemos falar sobre essas desigualdades e suas causas dentro de um sistema global como um todo.” (GIDDENS, 2012, p.377)

A desigualdade, como podemos perceber, não é um desafio a ser vencido apenas nos países em desenvolvimento como o Brasil, mas também em outros tantos do mundo globalizado. Quando falamos em desigualdade e suas causas, devemos lembrar que elas existem entre indivíduos e grupos das diversas sociedades. O mesmo autor diz que “a desigualdade baseada na classe e diferenças entre status social e por essas divisões sociais hierárquicas continuam a determinar as chances na vida atualmente” (GIDDENS, 2012, p.377).

        Para tentar entender o tema da desigualdade social e da pobreza, um recurso didático-pedagógico bem interessante que pode ser utilizado são as histórias em quadrinhos.

Durante muito tempo as histórias em quadrinhos foram olhadas com certa desconfiança quanto aos efeitos que elas poderiam provocar em seus leitores. Por representarem um meio de comunicação de vasto consumo e com conteúdo, até os dias de hoje, majoritariamente direcionado a crianças e jovens, as histórias em quadrinhos cedo se transformaram em objeto de restrição, condenadas por muitos pais e professores do mundo inteiro. Entretanto, percebeu-se nas últimas décadas que as histórias em quadrinhos podiam ser utilizadas de forma eficiente para a transmissão de conhecimentos específicos, ou seja, desempenhando uma função utilitária e não apenas de entretenimento.

Um bom exemplo disso é o arco de histórias em quadrinhos (HQs) publicadas nos números 76 a 87 da revista “Lanterna Verde e Arqueiro Verde”, publicado pela DC Comics, entre os anos de 1970 e 1971, com roteiros de Dennis O’Neil e desenhos de Neal Adams.

Essa é uma das séries mais elogiadas das histórias em quadrinhos de super-heróis, onde pela primeira vez o gênero encarava problemas políticos e sociais da sociedade contemporânea. 

Enquanto o super-herói Lanterna Verde apresentava o norte-americano médio conservador, o Arqueiro Verde era o homem com uma visão mais de esquerda e contestadora da sociedade vigente. Oliver Queen (identidade secreta do Arqueiro Verde) questiona o papel de Hal Jordan (identidade secreta do Lanterna Verde) como super-herói, e os dois personagens acabam realizando uma viagem pelos Estados Unidos, logo em seguida ganhando a companhia da heroína Canário Negro, namorada do Arqueiro Verde. Em cada cidade que o trio de heróis parava, encontrava um problema social diferente, justamente assuntos que ocupavam a mídia norte-americana do início dos anos de 1970.

Essas HQs, por tratarem de questões pertinentes à área das Ciências Sociais tais como pobreza, desemprego, falta de habitação, aumento demográfico, exploração capitalista, racismo, drogadição, fome, direitos da mulher, manipulação religiosa, indígenas, direitos civis, trabalho e alienação, todos assuntos polêmicos da época.

Algumas dessas questões já encontramos no primeiro conto do arco de histórias “O mal sucumbirá ante minha presença” (Lanterna Verde e Arqueiro Verde, nº 76, 1970), em que o herói Lanterna Verde ajuda um imobiliário (Jubal Slade) expulsar supostos arruaceiros de seu prédio, quando na verdade este homem os está mantendo num lugar imundo e asqueroso, sem nenhum saneamento, e ainda quer derrubar o prédio para fazer um estacionamento, despejando assim todos os moradores e aumentando o censo dos sem-teto e desempregados.

 Nesta história, temos a chance de ver gente desmoralizada por ter tido as oportunidades arrancadas de si, sendo obrigados a viver como indigente e escória, jogada ao relento e recebendo cuidados miseráveis de homens como Slade. Isto ainda é uma realidade hoje, não apenas nas grandes e pequenas cidades de nosso país como também nos Estados Unidos que, mesmo sendo a maior potência econômica do mundo, tem problemas sociais ainda tão sérios quanto os nossos, o que não é de hoje, como podemos ver nas histórias. Os autores Dennis O’Neil e Neal Adams quiseram tirar os leitores de seus casulos mostrando a verdade do mundo real dentro do mundo fictício.


REFERÊNCIAS

GIDDENS, Anthony. Classe, Estratificação e Desigualdade. In:______ Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

KOBIELSKI, Paulo Ricardo. O uso das histórias em quadrinhos e dos fanzines nas aulas de Sociologia. In: ____ Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015

ISSUU. Disponível em <http://issuu.com/lasquei/docs/grandes_cl_ssicos_dc_-_lanterna_verde_e_arqueiro_v>. Acesso em: 07 out. 2015.



segunda-feira, 23 de março de 2020

O comportamento de “Seita” e a vontade de ouvir somente o que convém





Daniel da Luz Machado - Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade São Judas Tadeu e Bacharelando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.





Nos dias atuais diante dessa calamidade pandêmica que assola diversos países de diferentes continentes, o conjunto de preocupações que assola uma grande parte da população é com o quê está por vir? Como enfrentaremos e sairemos dessa crise? As vidas como serão tratadas e modificadas? O quê a crise coletiva representará para cada indivíduo? Enfim os questionamentos são múltiplos e pertinentes, todos embasados na perplexidade com que esta pandemia deixou um contingente de vidas findadas.
Neste cenário ruim, esperamos que as lideranças em seus diversos âmbitos de gestão, nos acenem com algumas perspectivas de travessia desse mar revolto com o menor efeito de perda colateral. É chegado o momento em que posicionamentos ideológicos suplantem suas diferenças na busca pelo equilíbrio e o bem estar social e que todos nós possamos realizar a nossa parte no sentido da prevenção e da colaboração para minimizar os efeitos da propagação do Coronavírus.
Enquanto lideranças espalhadas pelo mundo inteiro se posicionam da maneira esperada pelas suas respectivas sociedades, aqui no Brasil nosso Presidente a cada instante se supera na arte de ser inqualificável, de ter atitudes inaceitáveis com o cargo que ocupa, de demostrar uma falta de empatia, de capacidade gestora, de respeito com o povo brasileiro. O Presidente do Brasil talvez não tenha sido avisado pelo seu staff de que as eleições presidenciais acabaram e que ele como vitorioso deveria de forma imediata governar para toda nação e não apenas para as elites e que em um advento de exceção como é esta pandemia, o mínimo de postura e respeito pelo temor coletivo seria de bom tom.
O Presidente Bolsonaro exacerba seu revanchismo e seu despreparo intelectual e cognitivo para assumir um cargo da envergadura que ocupa e cada instante parece fazer questão de “meter os pés pelas mãos” com pronunciamentos e aprovações de medidas que vão na contramão do que estamos vivendo.
É exatamente nesse ponto que o comportamento de “Seita” por parte de muitos de seus eleitores acabam se manifestando e dando origem a essa humilde análise.
Tanto em conversas em diversos ambientes, como lendo declarações em redes sociais e entrevistas é inacreditável o quanto o apoio cego e incondicional as bizarrices provocadas por Jair Bolsonaro se propagam. A adesão as suas estapafúrdias medidas e pronunciamentos, transcendem classe social, nível de escolaridade e quaisquer outros aspectos. Os seus defensores o protegem apenas pelo ato da proteção em si. A medida pode ser ruim para todos, mas a vassalagem é unânime em dizer coisas do tipo: Ah! Mas ele não quis dizer isso; Essa história não é bem assim; Os Jornais “A” “B” ou “C” são comunistas; Quando era o PT vocês não falavam, enfim torna-se extremamente desgastante a tentativa de argumentação, de tentar trazer luz a uma discussão, pois simplesmente os ouvidos se fecham e você que o sujeito vai ficando agressivo e o melhor caminho é encerrar o diálogo pois ele não chegará a lugar algum.
Étienne de La Boétie na sua ótima obra “Discurso da Servidão Voluntária” escrita no Século XVI nos diz que: “ É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura”.
Isso me parece ser claro nos seguidores do Presidente, que poderiam exercer a liberdade de romper com ele, visto que as promessas de campanha em momento algum estiveram perto de serem cumpridas no seu sentido mais completo. Bolsonaro atendeu apenas prerrogativas armamentistas. O combate a corrupção, a gestão sem viés ideológico, o crescimento econômico tudo não passaram de falácias e ainda por cima uma série de declarações e medidas que ferem grande parte de seus apoiadores, que absurdamente ainda mantém a defesa de seu mandato e de sua imagem.
Outras obras literárias que saltam a minha mente diante da desfaçatez de defender a gestão desse Srº e entender esse comportamento idiotizado da sua defesa são: Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley; A Revolução dos Bichos e 1984 de George Orwell e O Homem que amava os cachorros de Leonardo Padura, todas obras que oferecem uma boa reflexão a respeito da incapacidade de romper com certas surrealidades.

BIBLIOGRAFIA:

BOÉTIE, Étienne de La - Discurso da Servidão Voluntária;
HUXLEY, Aldous - Admirável Mundo Novo;
ORWELL, George - A Revolução dos Bichos;
ORWELL, George - 1984;
PADURA, Leonardo - O Homem que amava os cachorros.




segunda-feira, 16 de março de 2020

Obscurantismo e irresponsabilidades no comando do cotidiano


Daniel da Luz Machado - Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade São Judas Tadeu e Bacharelando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.



No último dia 15 de março, na contramão do bom senso, usando a prerrogativa democrática de pedir o fim da própria democracia, inúmeras pessoas estiveram as ruas de diversas cidades num ato pró-governo. Manifestar apoio ou críticas a um governo “A” ou “B” é do jogo democrático, não questiono essa premissa, mas o que leva inúmeras pessoas contradizerem orientações no sentido de precaverem a sua saúde e a de outras pessoas muitas vezes extremamente próximas ?
Ciências como a Psicologia, Sociologia, Antropologia, História certamente oferecem uma grande quantidade de conceitos e estudos que explicitam e explicam esse comportamento irracional de ignorar todas as falas que a comunidade internacional de saúde tem manifestado no sentido de nos orientar contra essa pandemia do coronavírus.
Vou me ater ao sentido do indivíduo sentir-se apto a proceder de forma “X” ou “Y”, quando este percebe que sua visão de mundo é legalizada pela oficialidade.
O Presidente brasileiro extrapolou de todas as formas a sua visão irascível em relação a ciência, em relação a liturgia do cargo que ocupa, em relação a normas minímas de civilidade, de erudição, de compreensão de tempo e espaço.
Já é uma insanidade na ótica democrática um chefe do executivo postar-se dessa maneira contra o parlamento, que a respeito de ter inúmeros representantes ruins, não deve ser este o modus operandi para equacionar e suprimir as defecções do poder legislativo.
Quando nosso mandatário aparece em público para prestigiar seus apoiadores , mesmo com a comunidade científica orientando precaução e evitar aglomerações, o recado dado e assimilado pelos seus correligionários é a de que a ciência não serve para nada, que basta o “Mito” frasear que eu sigo. Nem o rebanho rumando ao matadouro é capaz de tanta abnegação pelo seu sacrifício!!!
Não se trata mais da dicotomia entre “Direita” ou “Esquerda” e sim de percebermos o quão profundo é o abismo que estamos mergulhando no Brasil. Grande parte da população brasileira assumiu o comportamento de seita, já não basta mais discordar, mas é imprescindível defender as ideias do meu líder independentes do grau de sanidade que elas representem, afinal o mantra da minha opinião é o que vale e dessa forma seja bem vindo o retorno da idade média e quiçá em pouco tempo possamos voltar ao PALEOLÍTICO aqui no Brasil e riscar nas rochas “MITO” com desenhos de lança, pois arminhas são coisas do presente e de comunistas.


quinta-feira, 12 de março de 2020

Gostaria de saber quando a esquerda brasileira vai voltar a ser esquerda.



Jefferson Meister Pires é Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS, funcionário público e pesquisador.





Gostaria de saber quando a esquerda brasileira vai voltar a ser esquerda.

                    A cada semana que passa não consigo parar de pensar em qual será o próximo vexame que vamos passar, sejam os vexames reiterados por parte deste presidente e sua equipe, vexames estes que já estão se tornando parte do nosso dia-a-dia, naturalizados, previstos; Ou sejam os vexames sazonais reiterados por parte de nossos auto proclamados “representantes do pensamento de esquerda”.
                       O atual vexame está diretamente relacionado com a mais recente polêmica do embate Direita Vil X Esquerda Interesseira e está assentada na importante reportagem estrelada pelo Dr. Drauzio Varela no programa Fantástico da TV Globo¹ que foi veiculado no dia 08/03/2020, mais conhecido como último domingo.
                Antes de entrar no tema deste artigo preciso desabafar, pois não consigo entender como algumas pessoas ainda se espantam com as reações da direita brasileira acerca de problemas e pautas as quais sempre consideraram inúteis, eles estão cada vez mais inflados com as redes sociais e com o apoio popular do qual nem sabem porque recebem. Nossa direita sempre foi assim, sempre viveu de distorções, retirada de contextos, dados falsos e imprecisos,etc. A diferença é que agora com o advento das redes sociais ficou muito mais fácil ser estúpido (em todos os sentidos da palavra), só quem nunca esteve no debate é que se espanta com o nível baixíssimo do quadro “intelectual” da direita no Brasil.
                É claro, óbvio, natural, batido, comum que os interlocutores representantes de uma elite econômica irresponsável vão utilizar quaisquer dissonâncias no discurso “da esquerda” com os anseios do cidadão “comum” para cada vez mais nos jogar no abismo do obscurantismo. Não é a toa que nas últimas eleições fomo surrados como não se via há vinte e tantos anos, não é a toa que as pesquisas de opinião² refletem cada vez mais posições contrárias ao que nós da esquerda acreditamos serem os caminhos corretos, parece que estamos marchando contra o povão, ao invés de estamos ao lado ou no mesmo barco.
           Custo a acreditar que algumas de nossas vozes mais conhecidas, como por exemplo o youtuber filósofo Henri Bugalho³ e o Jornalista/Blogueiro/Colunista Leonardo Sakamoto4, entre outros, não conseguem entender questões básicas como a diferença entre preconceito e repulsa. Para entendermos esta crítica temos que entender primeiro o conteúdo da matéria global, onde a transexual Suzy, abraçada por Dráuzio, cometeu um crime hediondo. Alguns perguntam: E Daí? Eu respondo: E daí que esse crime o qual ela cometeu atinge os mais profundos medos, dores, sentimentos de nossa população de majoritária moral cristã, ou judaico/cristã como diriam os mais cultos, este crime gera uma repulsa quase incontrolável na maioria das pessoas. Suzy não roubou um mercado, não roubou um carro, não agrediu uma senhorinha na saída da igreja, Suzy violentou sexualmente e depois asfixiou de forma brutal o menino que se chamava Fábio dos Santos, com então nove anos de idade, sem a menor chance de defesa.
                 O problema para nós que nos sentimos esquerda nunca foi e nunca será o abraço de Drauzio em Suzi, até mesmo o pior criminoso que possamos imaginar pode receber um abraço como uma forma de mostrar que neste mundo há compaixão, embora Suzy não a tenha sentido no momento que praticou o crime. O problema para nós enquanto esquerda surge quando tentamos afastar o criminoso do fato cometido, isso nunca poderá ser feito, este fato vai andar ao lado de Suzy mesmo depois de cumprida a pena, pois o ato de matar alguém é indeletável (acho que essa palavra não existe), é impossível de ser esquecido.

              Podemos perdoar sim, podemos abraçar sim, mas jamais podemos querer esconder ou mascarar o que foi feito. A bendita reportagem tratava sobre o abandono e dificuldades extremas que os presos trans sofrem nos presídios masculinos e machistas, todas as outras trans foram abraçadas por Dráuzio, não vi ninguém reclamando disto. A Transexual Suzy não recebe visitas há oito anos porque cometeu um crime bárbaro e cruel e não somente porque é transexual, embora seja lógico dizer que o fato de ser transexual também tem peso nesse abandono, a reportagem poderia simplesmente ter dito que Suzy cometeu um crime bárbaro, cruel e devido a este ato hediondo E ao fato de ser trans, ou EM CONJUNTO com o fato de ser trans, não recebe visitas nem cartas há oito anos.

                     Karl Popper5 já nos ensinou há décadas que apenas baseados na observação jamais podemos afirmar que todos os cisnes são brancos, jamais podemos clamar como conhecimento científico aquilo que não considerar todos os fatos envolvidos no evento, tanto os fatos concretos assim como os abstratos possíveis de serem imaginados. Enfim, o que este episódio mostra de mais importante para nossa reflexão enquanto pensamento de esquerda é se nossas posições ideológicas são mais importantes que as ações, sejam elas prováveis ou improváveis, concretas ou abstratas, dados, estatísticos ou imaginativos...
                      Porque uma grande parte de nós se revolta veementemente quando um clube de futebol contrata o goleiro Bruno6, condenado por um ato brutal e torpe, mas não se revolta quando uma reportagem omite fatos e tenta passar uma idéia no mínimo equivocada da situação de outra pessoa que cometeu um crime brutal e torpe? Será que um dos crimes foi mais brutal que o outro? Será que nossa empatia é seletiva? Será que as pautas identitárias são mais importantes do que qualquer outra coisa? Suzy ao ser trans não é mais uma assassina confessa?
                       Em uma época não tão distante, nossa esquerda berrava contra criminosos de todos os tipos, contra impunidade, contra a Rede Globo, contra uma série de coisas que parecem hoje ser menos importantes do que conseguir espaço dentro do movimento X ou Y, ou aquele cargo importante na prefeitura. Eu vi uma esquerda que fazia reuniões à noite, em garagens e peças sem reboco, que tinha a fala muito longe da norma culta, que não viajava à Paris, que não tratava povo como imbecil e a si mesmos como guardiões da luz do conhecimento.
                       A esquerda em que eu iniciei andava de busão e trem, morava em periferia ou pelo menos ia nas festas da periferia, gostava de interior, tinha nojo de Estados Unidos e Europa, sentia repulsa pelos poderosos. A esquerda que me formou não usava terno, não comprava no Carrefour e nem comia sushi (confesso que sushi eu gosto, embora coma muito raramente), a esquerda que andava de braços dados com o povo não pisava em símbolos religiosos, mesmo sendo ateus, não contratava amigos com dinheiro público, não fazia promessa de cargos para conseguir apoio (aliás, denunciava isso) não tratava como criaturas inferiores aqueles que ocupavam posições inferiores.
                     Por fim não posso deixar de lembrar que algum escritor famoso certa vez disse que o proletário é (...) “uma esfera que possui um caráter universal por seu sofrimento universal e que não reivindica nenhum direito particular, uma vez que nenhuma injustiça em particular, mas sim a injustiça de modo geral, lhe é perpetrada. só se vê como pessoa quando primeiro se vê como proletário”...7
                   No meu entendimento trata-se de uma questão de pertencimento (ou não pertencimento), de falta de empatia. Quando passamos a valorizar diplomas mais do que conhecimento, quando tratamos alguns trabalhadores como nossos inimigos e outros como amigos, quando passamos a defender a idéia absurda de que pautas identitárias estão descoladas de outras pautas ou da principal pauta de todas, que sempre vai estar no fundo das questões, a desigualdade de oportunidades... 

                    Estamos trabalhando para nos afastar das pessoas e nos aproximar das idéias, estamos próximos dos discursos e longe do entendimento e da humildade de ouvir antes de falar. Dráuzio não fez nada errado ao abraçar Suzy, mas nós fizemos ao não criticar a Rede Globo por sua forma de apresentar a matéria. Nós acabamos dando armas para que uma direita desonesta e preguiçosa, “nós” damos de bandeja “nossos” equívocos pra que eles caiam de pau em cima e nos coloquem todos no mesmo angu, todos como anti-povo.
Repito: gostaria de saber se algum dia a esquerda brasileira voltará a ser esquerda.



Referências:
5 POPPER, Karl Rai. A lógica da pesquisa científica. 15. ed São Paulo: Cultrix, 2011.

7 MARX, Karl. (1843). A contribution to the critique of Hegel's Philosophy of Right: Introduction. In: Marx & Engels Collected Works (vol. 3).

terça-feira, 3 de março de 2020

Só agora, Bolsonaro?




Paulo dos Santos é Cientista Social pela UFRGS, mestrando em Ciência Política pela UFRGS.










Só agora, Bolsonaro?

Desde já, preciso reconhecer que não transito muito bem pela ironia, mas pretendo me utilizar dela no melhor sentido ao longo desse texto.
Iniciar o dia tem sido sempre um exercício. Nunca sabemos o que vamos encontrar ao acessar alguma plataforma de notícias, ou rede social. Acessamos o Twitter na expectativa de encontrar as mais variadas pérolas proferidas por aquele que ocupa a presidência da República.
Nesse dia 18 de fevereiro não foi diferente. Bolsonaro veio a público ofender a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha. O conteúdo sexual na sua fala é vil, repugnante. Reforça o machismo, a misoginia, o sexismo, a cultura do estupro. Jair Bolsonaro, o anti-Messias, é sórdido e canalha. Isso tudo a pouco mais de um ano da sua vitória eleitoral contra Fernando Haddad e Manuela D’Ávila nas eleições presidenciais. Afinal, como expresso no Editorial do Estadão logo na abertura do segundo turno das eleições de 2018, aquela eleição seria “uma escolha muito difícil”.
Mas tudo bem, suas pérolas são bravatas de alguém que “pode amadurecer”, até porque Bolsonaro teria a “chance de ouro de ressignificar a política do Brasil”. Ao menos essa era a aposta de Luciano Huck, o pré-presidenciável do PSDB para 2022.
No entanto, Jair Bolsonaro, dessa vez, foi longe demais. Atacar uma mulher da forma como ele atacou é algo inédito em sua biografia. Os ataques às e aos profissionais do jornalismo já era algo palatável, até porque as constantes bananas que ele tem distribuído à imprensa não é algo tão ruim assim. Mas, ofender uma mulher em pleno exercício da sua profissão, aí o anti-Messias foi longe demais.
Que bom que jornalistas importantes como Eliane Cantanhêde se posicionaram em suas redes sociais demonstrando vergonha com o ocorrido: “Hoje estou com vergonha e raiva do que o presidente do meu país falou. Não é contra uma jornalista, uma mulher, é contra nós, mulheres.”
Dessa vez a ofensa ultrapassa os limites da civilidade e do decoro. Dessa vez! Antes, quando gritávamos que Jair Bolsonaro era um assediador, alguém que usava da atividade parlamentar para reforçar a cultura do estupro, fazíamos sozinhos. Antes, quando dizíamos que ele era misógino, não encontrávamos eco.
É óbvio que a união das mulheres contra Bolsonaro e tudo o que ele representa é mais do que importante, é fundamental! No entanto, por que só agora? Por que Jair Bolsonaro não respondeu por quebra de decoro quando levantou a mão contra Maria do Rosário e a chamou de “vagabunda” no Salão Verde da Câmara dos Deputados? Por que não perdeu o mandato quando disse, da tribuna da Câmara dos Deputados, mais uma vez à Maria do Rosário: “só não te estupro porque você não merece”? Por que Bolsonaro não saiu preso do plenário da Câmara dos Deputados ao elogiar a memória de um dos maiores torturadores do período ditatorial brasileiro durante sessão do golpe da presidenta Dilma, enfurecendo apenas os “ativistas”, como exposto pela BBC em matéria veiculada logo após aquela sessão tenebrosa da Câmara dos Deputados?
Por que os insultos às mulheres de esquerda não geram comoção e arroubos democráticos da imprensa e dos partidos de direita?
Porque Jair Bolsonaro os serve!
A agenda econômica de destruição do Estado imposta por Paulo Guedes é comemorada pelos jornalões e pela direita brasileira. Rodrigo Maia abre as portas da Câmara para qualquer proposta de ataque às trabalhadoras e aos trabalhadores. O Congresso Nacional tem respondido aos interesses da elite brasileira. E Bolsonaro é importante para que isso aconteça.
O que Bolsonaro não aprendeu ainda é ficar calado. Mas, mesmo assim, ele segue tendo alguma utilidade, afinal, como disse o humorista Fábio Porchat, “a única coisa positiva que Bolsonaro fez foi tirar o PT do poder”.


segunda-feira, 2 de março de 2020

Os Parasitas e a Desigualdade Social

Paulo Kobielski 
Licenciado em História, FAPA
Especializações em Filosofia e Sociologia, UFRGS
Organiza junto com Denilson Reis, o Dia do Quadrinho Nacional Alvorada, Dia Nacional do Fanzine Alvorada, Gibifest Alvorada, Mutação POA,

Dirigiu e co-roteirizou o filme “Fanzine Tchê: 30 anos de resistência”


Os Parasitas e a Desigualdade Social

            O cinema no ano de 2019 apresentou alguns filmes que podem nos levar a reflexões interessantes. Três dessas obras me chamaram atenção por tratarem de um tema muito pertinente nas sociedades humanas: a desigualdade social e suas mazelas. “Bacurau” (Brasil), “Os Miseráveis” (França) e “Parasita” (Coreia do Sul) - nenhum deles produzido em Hollywood -, estão ancorados nos preceitos de dominação e da exploração do homem sobre o homem.
                 O filósofo iluminista J. J. Rousseau (1712-1778) no seu clássico “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade social”, publicado em 1775, nos adverte que toda desigualdade se baseia na noção de propriedade particular criado pelo homem e o sentimento de insegurança com relação aos demais humanos. Essa noção de propriedade criou nos primitivos a ideia de acumulação de bens e, consequentemente, superioridade frente aos demais. Essa suposta superioridade foi o estopim para o início dos conflitos entre os homens de uma mesma tribo e, posteriormente, entre cidades e nações. O surgimento da propriedade privada levará necessariamente a uma administração e a criação de uma instituição fundamental: o Estado. Com isso, vimos que, além do advento do poder econômico – a propriedade –, percebemos o surgimento do poder político – o Estado. Que não por acaso, estarão interligados ao longo da história.
                2019. A produção cinematográfica mundial está num crescente, nunca antes visto. Os países periféricos – Brasil, França??? e Coreia do Sul -; se não desenvolvem uma forte indústria no setor – como em Hollywood -, estão produzindo obras que se, não dispõe de grandes recursos, estão cheias de criatividade. Interessante nessas obras é a percepção sobre suas realidades. 

                 Em “Bacurau”( Brasil), longa metragem dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Mendonça, o sertão não vira mar, e sim numa distopia em que seus moradores reagem a dominação imperialista onde Tarantino fica no chinelo. Os Miseráveis, dirigido pelo malês Ladi Ly (França), inspirado no livro clássico de Victor Hugo (1862), retrata o ambiente no subúrbio de Paris (Montfermeil), no final do século XX, e mostra o barril de pólvora étnico e religioso que a França se tornou nas últimas décadas. Realizado em 2018, o longa mostra as condições em que os jovens e crianças de origem africana e da religião muçulmana vivem à margem da sociedade francesa. Onde as batidas policiais – ou a ação das milícias – são uma constante no bairro parisiense. Nada a ver com o Brasil, onde milícias não existem. Isso?
            “Parasita”, ... aquele que “vive à custa alheia por pura exploração”. O filme do cineasta sul-coreano Bong Joon Ho, estica a discussão sobre o tema da desigualdade social, onde o rico é cada vez mais rico, e o pobre, cada vez mais pobre. Dados nos informam a todo momento que a concentração de riqueza mundial aumentou: em 2017, os mais ricos somam 43 pessoas. A fortuna dos bilionários aumentou 12%, enquanto a metade mais pobre teve seu patrimônio diminuído em 11%. No filme, os Park representam as famílias ricas que só podem existir às custas do empobrecimento e da exploração de famílias como a dos Kim – os pobres do subúrbio da metrópole coreana abaixo de tudo, inclusive d’água. Mas que teimam em resistir a tudo o que a vida lhes apresenta.
            E aí, pra onde estamos indo? Da forma em que a economia capitalista se apresenta, na progressiva escalada do mundo dos negócios, o ter se sobrepõe ao ser, e aqueles que podem mais estão sempre pisando naqueles que nada podem. Que esperança podemos ter? Nos três filmes em que assisti, me chamou a atenção a forma em que cada comunidade oprimida pelo sistema se organizou para resistir a imposição da classe dominante.