domingo, 20 de dezembro de 2020

A importância dos atos antirracistas para derrubar o governo Bolsonaro-Mourão

 

 

Rafael Freitas

Professor. Militante do PCB.

 







Rafael Melo

Trabalhador da saúde. Sindicalista. Militante do PCB.








         O ano de 2020 encerra com um conjunto de mobilizações de caráter antirracista, que foram perpetradas mais uma vez, por trágicas e cruéis expressões do racismo estrutural que solidifica nossa sociedade de classes. Em Porto Alegre, diversas lutas em separado, movimentam a política local.

No dia 19 de novembro, um dia antes da data da Consciência Negra, João Alberto é morto, após ser espancado pelos seguranças do Carrefour, chamados MAGNO BRAZ BORGES e GIOVANE GASPAR DA SILVA- também da Brigada Militar. Após esse brutal assassinato, no dia seguinte teve manifestação em frente ao Carrefour onde aconteceu o fato, no bairro Passo D’Areia. E no dia 23, em frente o Carrefour da Bento Gonçalves. Nos dois atos, a Brigada Militar reprimiu os manifestantes, que revidaram com pedras e barricadas.

Na tarde do dia 8 de dezembro, a Brigada Militar invade sem mandato a residência da Promotora Legal Popular Jane Beatriz Silva Nunes, que foi morta em seguida pelos policiais armados e racistas. No seu local de moradia, espontaneamente os moradores da Vila Cruzeiro, usam a avenida Tronco para se manifestarem, e mais uma vez a Brigada Militar reprime os manifestantes, que revidam, queimando objetos nas duas vias da avenida e um carro. Dias mais tarde, há nova manifestação, dessa vez pacífica, na esquina entre as ruas Caixa Econômica e Cruzeiro do Sul, ainda assim com forte aparato polícia presente.

       Essas mobilizações em especial, aliadas à um conjunto de mobilizações populares que muitas vezes passam despercebidas, podem ter um sentido muito importante na correlação de forças, contra o governo Bolsonaro-Mourão.

      Primeiro, por seu caráter agregador, englobando em um cenário de descrença com o sistema político-burguês, a necessidade de ação do povo e de luta de classes. Dentro de um cenário político extremamente favorável ao avanço do conservadorismo, e em alguma medida, de um fascismo rejuvenescido, de nosso tempo, essas mobilizações têm um poder importante de mobilização. A combatividade política do povo negro sempre esteve ativa e necessária, mas em um contexto como o nosso, acabam servindo como estopim de uma explosão que acaba desacomodando até setores médio-progressistas, pela necessidade de reação popular imediata.

     Nesse fluxo, grandes mobilizações populares, além de serem táticas na luta de posição contra as opressões, acabam chamando atenção para uma luta mais imediata, distante da burocracia político-eleitoral e portanto, mais acessível à população. O conflito social fica em nossa frente, em nossas mãos.

     Também, precisamos compreender que pautas como o racismo, bate taticamente com força em um governo como o de Bolsonaro-Mourão. Mexem em microestruturas sociais de reprodução de poder, e quando massivamente organizadas, podem atrair forte reação popular. Podem inclusive reativar a necessidade de luta por outras pautas mais gerais que atingem toda a classe trabalhadora.

      Sabemos o quanto por vezes, faltam direção única e organização em atos de massas como esse. Mas esse quase-espontaneísmo inicial, serve de ingrediente atrativo para massificação. Por isso, nossa tarefa é colocar força nas mobilizações populares- com todos os cuidados sanitários devido a pandemia do COVID-19. A agenda é essa! Muito mais que belos acordos de frentes mirabolantes, focadas em eleições, precisamos agora investir forças na construção de um “caldeirão de lutas populares”. Em muitos países deu certo a estratégia de massificação das lutas. Acreditamos nessa linha. O governo reúne contradições, desestabilidade e incompetências o suficiente, para que a mobilização popular ao menos tencione sua base, coisa que “tuitaços”, memes e palavras de ordem como “eu avisei”, não vêm conseguindo fazer.



        A saída é o poder popular!






 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Precisamos falar sobre espaços vazios

 


Daniel da Luz Machado - Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade São Judas Tadeu e Bacharelando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.




    Vivemos um contexto político e social muito preocupante em nosso país. Não obstante uma economia balizada por uma desigualdade assustadora, estamos lidando com uma pandemia de proporções alarmantes no que tange a saúde pública e também com reflexos nefastos para população “na própria carne” e “no próprio bolso”, enfim um cenário perfeito para proliferação de discursos inconsistentes e vociferações vazias que no final ajudam a perpetuar o status quo que já era insalubre antes de sermos tombados pelo tsunami da covid – 19.

    Uma situação em especial eu gostaria de trazer para essa reflexão que dividirei com você leitor e que visualizo como uma das variáveis importantes para entender o vazio que convida o caos para bailar.

    No dia 04 de dezembro do corrente ano foi ao ar em suas plataformas digitais a primeira parte de um debate do Programa Ringue da PAN 85 com as participações de Guga Noblat, Kim Kataguiri , Fernando Holiday e o Professor Adriano Viaro, sendo o Professor Viaro um debatedor convidado representando um ponto de vista contrário ao do Fernando Holiday.

    O Professor Viaro é Mestre em História e um grande pesquisador das relações étnico-raciais, com especializações em sociologia, além de palestrante e Diretor de uma escola na cidade de São Leopoldo, enfim um educador em constante pesquisa e aprimoramento, que traz em sua argumentação a solidez por anos incansáveis de estudos. Do outro lado Fernando Holiday, o fruto político do vazio que proporciona o caos, com argumentações anacrônicas, inconsistentes e com uma densidade de castelo de areia construído perto do tradicional futebolzinho na praia.

    O Debate se deu com uma supremacia esperada por quem conhece o conteúdo do Professor Viaro face ao também esperado festival de inconsistências que Fernando Holiday certamente diria. Mas o que me causa bastante perplexidade são os comentários de algumas pessoas ligadas ao pensamento progressista ou de esquerda, que questionaram que o Professor não deveria “Ter dado voz e ibope” a um veículo de informação que saúda abertamente o establishment .

    Fico imaginando o quão nociva é a atitude de falar apenas com pares e os reflexos contundentes desse comportamento de caramujo que não sai da própria casca.

    Há poucos dias as eleições para prefeito aqui no estado do RS, para ficarmos na aldeia, trouxe vitórias de partidos conservadores , com histórico de governos jamais voltados para o bem estar da maioria da população que se aproveitam de discursos vazios de antipolítica , ou de medo de teorias comunistas (termo atualmente utilizado para definir tudo que não é de direita ou extrema direita) e parte da derrota dos campos mais progressistas, na minha opinião perpassam justamente por não encararem a realidade e acima de tudo por não ocuparem os espaços vazios.

    Fernando Holiday e Kim Kataguiri representam os oriundos do caos, representam o esvaziamento do discurso, a falácia do malabarismo retórico que não leva a lugar nenhum, representam o “velho” mal disfarçado de “novo” que construíram um capital social e político em cima da ausência do debate. Eles são malabaristas, mas quando contrapõem seus argumentos com quem seriamente estuda e se prepara e assume o papel de debater com eles sem se preocupar com o espaço e o momento, eles tremem, se anulam e mostram que parte do seu sucesso se deu pela falta de autocrítica e uma certa arrogância da esquerda e outros setores progressistas que se negam a discutir com eles.

    Os espaços estão ai. A direita está ocupando e se ferramentou bem antes da esquerda para isso. Ou avançamos e passamos a dividir esses espaços sem melindres e pompas, ou discursos vazios e muitas vezes desonestos intelectualmente como os do Holiday e do Kim se multiplicarão de tal forma que a mudança desse ciclo governamental distópico se prolongará por um período bem maior do que possamos aguentar.

  Façamos como o Professor Viaro que não se furtou do debate e não quis falar apenas aos seus pares, pois em tempo, somos minoria e se continuarmos apenas dentro da bolha, tenderemos a desaparecer.

Política e swing, o sentido é coletivo, a prática individual.

 

 

Jefferson Meister Pires é Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS, funcionário público e pesquisador.






     O pensamento binário domina como nunca a cena política brasileira, com demonstrações bizarras onde os movimentos dominantes tanto na situação (extrema direita, olavistas, etc.) quanto na oposição (esquerdas e alguns poucos gatos pingados no centro e direita) se alimentam do binarismo como forma de se perpetuar cada vez mais na disputa política em campos que seriam antagônicos, mas, quando observados mais atenciosamente em seus discursos e práticas, acabam por se mostrar muito mais próximos do que gostamos de admitir.

    Estamos falando claramente de grupos políticos que desejam ser “as elites” dentro da disputa político/cultural, porém, não se tratam necessariamente de elites econômicas e culturais, sendo muito mais coerente falar em grupos políticos fechados, quase impenetráveis e de pouco diálogo. Se comportam como figuras dominantes em um grande jogo, os donos da bola e do campinho ou os contestadores da rua de cima, se fecham em patotas que giram em uma dança interminável em torno do poder e de tudo aquilo que o poder oferece: cargos, dinheiro, prestígio, história, etc.

    Em recentes conversas com amigos seguidores de Bolsonaro, tentaram me convencer daquilo que já foram convencidos, que a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg se manifestou em evento esportivo contra o presidente por ser canalha e burra (segundo os diversos posts os quais fizeram questão de me apresentar como provas) por ser canalha e burra é de esquerda (lógico, esquerdistas são ou canalhas ou burros ou ambos), por ser de esquerda é comunista, por ser comunista é petista. Assim como, mais recentemente, julgam todos aqueles que se posicionaram a favor de Joe Biden na corrida presidencial norte-americana.

    Em recente conversa com amigos que militam no PT, expus meus motivos para não defender as candidaturas as quais esse partido estiver ligado, mais do que isto, expus a eles os motivos para desejar que seja obliterado nesta e em todas as próximas eleições, motivos os quais venho observando em mais de vinte anos como funcionário público e militante de esquerda (não sei se sou só burro ou só canalha, provavelmente ambos). As respostas de meus amigos petistas são praticamente todas no mesmo sentido: “Se você quer virar à direita faça isso logo e não fique arranjando desculpas nos outros”; Ou seja, para vários amigos e colegas que militam no ParTidão, se você não seguir um modelo de ser esquerda (de preferência não questionando os erros do PT) você é pelego, sendo pelego você é gado, sendo gado você é de direita (e logicamente sendo de direita ou você é fascista ou não se importa que outros exerçam o fascismo).

    Este problema matemático nos coloca em tristes posições onde a própria discussão política desaparece, ela estará sempre ligada a aspectos pessoais e individualistas, desejos e interesses particulares os quais são desligados de qualquer noção de bem comum. A posição política se tornou mais importante do que a própria política, engessada e imutável até que em algum momento sejamos traídos por aqueles para os quais demos nosso sangue e suor, somente neste momento é que somos capazes de questionar aquilo que até então era inquestionável.

    Como aquela moça que disse ter sentido ciúmes do marido após ter se satisfeito nos atos sexuais em um swing em que participava, ao ver que o marido continuou se divertindo com o casal convidado, os agentes políticos binários estão preocupados exclusivamente com suas satisfações pessoais, se tornam cegos e incapazes de entender que a pluralidade de posições, pensamentos e principalmente satisfações é o que tornam possíveis a presença do humanismo e do amor nas diferentes questões da vida contemporânea, especialmente nas instituições de Estado, criadas com o intuito de servir a todos os cidadãos, independente de posições individuais.

    A cena política nacional, no momento em que escrevo este pequeno texto, é mais parecida com uma enorme suruba alimentada por cargos e privilégios, onde os poucos convidados fazem tudo que estiver ao seu alcance para que seja um clube fechado e sem rotatividade, só participam da festa aqueles que beijaram a “mão” do porteiro. E do lado de fora do surubão tem uma galera que se une para falar mal de toda essa esbórnia, mas que até ontem eram os donos da festa e não vêem a hora de voltar para o lado de dentro do clube dos prazeres.

    Confesso, ainda atordoado, que está se tornando cada vez mais difícil reconhecer as diferenças entre estes grupos do que suas semelhanças. Para encerrar deixo uma reflexão lida no Blog Universa do portal UOL de onde destaco um pequeno trecho deste fabuloso texto escrito pela Psicóloga, Terapeuta Sexual e blogueira, Ana Canosa:

    “No final das contas, não ser uma unanimidade é, de fato, o grande desafio do ser humano. E há quem aposte que, na cultura pós-moderna, marcada pelo capitalismo de consumo, nos voltamos cada vez mais para uma necessidade infantil de satisfação plena. Se não reconhecermos essa nossa porção cada vez mais narcisista, estaremos fadados a cavar cada vez mais fundo o buraco do vazio existencial, em vez de fazermos as pazes e conviver com ele.”

    Nossa política partidária abraça os sentimentos individualistas e narcisistas, mais ainda, se alimenta desses sentimentos para criar as brechas necessárias onde os ideais desaparecem e são substituídos pelas necessidades, necessidades de quem?



domingo, 6 de setembro de 2020

A máscara que encobre a história e a Morte Rubra: Prenúncios distópicos de um futuro próximo?

 

Priscila Klein da Silva

Professora da Rede Municipal de Alvorada

Pedagoga – Orientadora Educacional / ULBRA

Especialista em Educação de Jovens e Adultos e Educação de Privados de Liberdade / UFRGS

Mestra em Educação / PUCRS



As manchas escarlates no corpo, especialmente aquelas no rosto da vítima, representavam a exclusão que a privava da assistência e da compaixão de seus semelhantes. [...] Apesar disso, o príncipe Próspero se sentia feliz, intrépido e sagaz (POE, 2018, p.15).


O trecho citado faz parte do conto de terror de Edgard Allan Poe, intitulado “A Máscara da Morte Rubra”, escrito em 1842. Pretendo aqui traçar um paralelo entre o conto anunciado e o contexto atual em que estamos vivenciando, com intuito de que possamos compreender algumas das consequências quando não encaramos a História e todas as suas ruínas (BENJAMIN, 2012).

Desde março, aqui no Brasil, temos nos deparado com uma Pandemia de proporção mundial e alto poder de contágio: a Covid-19. Não me aterei em explicá-la cientificamente, pois acredito que há muitas informações nos meios de comunicação, nacional e internacional, que mensuram como este vírus se comporta em nosso organismo, e/ou quais as precauções que devemos ter para não contrair esta doença (embora nem todos possuam condições para tal prevenção).

No conto de Allan Poe, uma peste também dizimava o país, e nenhuma como ela havia sido tão fatal. Era chamada de “Morte Rubra”, porque o “sangue representava a sua imagem e sua marca” (POE, 2018, p.15). Os sintomas eram caracterizados por dores agudas, tonturas, sangramento pelos poros, seguidos de deterioração (POE, 2018). No país, pouco foi feito para minimizar a peste que o assolava. No reino do príncipe Próspero não foi muito diferente.

Quando a população de seus domínios havia se reduzido à metade, ele reuniu mil amigos saudáveis e festivos, dentre cavalheiros e damas de sua corte, e com eles se recolheu em uma de suas abadias acasteladas (POE, 2018. p.15).


Assim como no reino do príncipe Próspero, desde que tivemos que reorganizar nossos modos de vida em razão da pandemia, presenciamos situações em que alguns que possuem certos privilégios, protegem somente aqueles que fazem parte de seu círculo. Mas, o que tem me intrigado, de modo a tirar meu sono em algumas circunstâncias, é como este mesmo comportamento opera em nós, classe trabalhadora. Chama-me atenção como este vírus tem agido em nosso emocional. Como a pandemia tem influenciado em nossa ética, em nossa noção de coletividade, em nossa capacidade de ressignificar modos de vida (ou em conservá-los).

No reino do príncipe Próspero, mais precisamente na abadia acastelada em que ele e seus convidados estavam confinados de tudo, inclusive da realidade, vivia-se num mundo paralelo, com muitos atrativos artísticos, musicais e tudo o mais que pudesse manter todos entretidos, para que o real não ocupasse suas memórias.

Walter Benjamin nos esclarece que “a verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento” (2012, p.07).

Nesse sentido, assim como no reino do príncipe Próspero, também vivemos um momento negacionista em relação a pandemia, onde uma parte da população faz questão de não tomar os cuidados necessários para evitar a contaminação pela covid-19. Prefere “viver a vida”, se reunir com familiares e amigos, não usar máscaras em nenhuma hipótese, ir a praia normalmente. Assim como o grande baile de máscaras organizado no reino de Próspero, onde todos os convidados, presos em seus delírios de superioridade, pensavam que estariam a salvo da Morte Rubra.

Mas, não são somente os negacionistas que têm este comportamento, muitas vezes incrédulo, outras vezes irresponsável. Parte da população, esta que se manifesta nas redes sociais, preocupada com a pandemia e com o comportamento das outras pessoas, frequentemente também não toma todos os cuidados necessários para proteger-se e proteger os seus. Há uma necessidade de manter aquilo que era cotidiano. Nas pequenas coisas, como fazer as compras no mercado (“ninguém compra o tomate do jeito que eu gosto”).

Percebo que, por um tempo, um véu encobriu o conservadorismo que habita em algumas pessoas. Com uma proporção micro, mas com significação semelhante ao conceito, conservadorismo aqui se refere ao fato de manter comportamentos e crenças que, de alguma forma, a situação atual nos mostra que há necessidade de desvendar. São valores que precisam ser repensados, para a preservação da vida humana. Mas há resistência, mesmo daqueles que se intitulam progressistas, ou que possuem uma visão mais à esquerda.

O baile de máscaras que ocorreu no reino de Próspero foi o maior que já aconteceu no local. Foi pensado com todo o cuidado para que não houvesse nenhuma tentativa de invasão de fora do palácio, em razão do risco de contágio. Edgard Allan Poe foi magistral na riqueza de detalhes sobre a festa e sobre o palácio. Tudo transcorria bem, todos se divertiam, até que ao soar as doze badaladas do relógio, surge um ser misterioso, mascarado. “A figura era alta e esquelética e estava coberta da cabeça aos pés com uma vestimenta mortuária” (POE, 2018, p.18). O príncipe Próspero, mesmo apresentando receio quanto a esta criatura, não podia deixar transparecer aos seus amigos e por isso, partiu para cima do estranho. O mascarado misterioso acabou com a vida de todos no palácio. “Agora a presença da Morte Rubra era reconhecida [...] E a escuridão, a decadência e a Morte Rubra reinaram com total domínio” (POE, 2018, p.19).

E quanto a nós, em 2020 d.C, será que conseguiremos encarar a história de frente, reconhecendo-a e “escovando-a a contrapelo” (BENJAMIN, 2012), superando comportamentos que só mantém o status quo e buscando outro modelo de sociedade? Ou deixaremos a Morte Rubra do progresso nos arrastar ladeira abaixo, assim como fez no reino de Próspero?


REFERÊNCIAS:


BENJAMIN, Walter. O anjo da História. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.


POE, Edgard Allan. A máscara da Morte Rubra. Tradução de Ana Karina Borges Braun. Caderno de Tradução, Porto Alegre, n.42 jan/jun, 2018.









quarta-feira, 8 de julho de 2020

O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS


Rafael Freitas - Educador popular, coordenador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata




Rafael Melo - Enfermeiro e Sanitarista











                      O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS

             O que chamamos aqui de pequena política encontra as mais diversas definições, explicações e abordagens. Preferimos pensar a pequena política a partir da nossa realidade e do marxista italiano Antonio Gramsci, que enfrentava o fascismo primeiro, enquanto nós vivemos o avanço fascista no tempo presente. Chamamos de pequena política a forma como a política é conduzida em Alvorada, ou seja, ações que servem para manter as relações tradicionais entre governos e a classe trabalhadora, que nem sonham em colocar no horizonte a superação das classes, e o fim de um mundo com governantes e governados. Parece uma ingenuidade ter como objetivo um mundo novo, com novos valores e relações sociais. Mas a democracia representativa foi também algo impensável durante o Brasil escravista, quando os abolicionistas radicais eram “xingados” de comunistas. Independente do que o caro leitor ou a cara leitora pense lendo essas linhas, as relações sociais no Brasil irão mudar, como sempre se alteraram. E cada prática em sociedade participa dessa variação.


             Muitas pessoas têm chamado a pequena política de corrupção, de velha política, entre outros apelidos. Pra nós, essas palavras não têm dado conta da magnitude dos problemas que passamos. A abordagem a partir da “corrupção”, com muita frequência, se vale tão somente de aspecto como uma moralidade barata, quando não seletiva. Também pessoaliza esquemas de corrupção em supostos “políticos do mal”, excluindo da análise um sistema maior de beneficiamento. As mais fervorosas manifestações contra a corrupção, nos pareceram (talvez intencionalmente ou socialmente produzido) direcionadas somente aos “corruptos” (corrompidos) sem apontar os corruptores, no caso do congresso e do executivo nacional, grandes empresários que muito mais têm a lucrar que os próprios políticos “corruptos”.


              A leitura que trazemos aqui, é que esquemas de beneficiamento não dependem - somente - de “políticos corruptos”, mas estruturam todo um sistema, uma espécie de rito político brasileiro, que mais tem a ver com as regras do jogo, que com boa ou má intenção. As regras desse jogo não estão descoladas com a própria sociedade que as criou.

            O rito político brasileiro está estruturado em certa sociedade constituída historicamente. O Brasil é um país capitalista de economia dependente, com um Estado historicamente clientelista com o grande Capital e perverso com a classe trabalhadora. Chamamos atenção, para não pensarmos o Estado como algo inerte ao Capital, pelo contrário. Desta forma o que muito chama de “corrupção”, na verdade é a forma mais clássica de funcionamento desse modo de ser do Estado burguês.

         Preferimos, portanto, falar de um ciclo de pequena política, que se sustenta e não está descolado de nossa (des)organização social. Não basta tratarmos aqui de políticos bons ou malvados, mas de um sistema de dominação que favorece os mais ricos e penaliza de forma cruel os mais pobres.

          Para tornarmos o debate mais palpável, usaremos como exemplo a prática política de nossa cidade: Alvorada. Alvorada é uma cidade pequena o suficiente para expor com facilidade as práticas de pequena política e grande o suficiente para que essas práticas sejam substanciais à manutenção dos sistemas de poder. Mas afinal, o que é esse tal de ciclo da pequena política, em Alvorada?

          O ciclo da pequena política não tem um início. Se tem, nessa altura do campeonato já é difícil de saber onde inicia e onde termina. Mas tem um ponto forte, que estamos chamando aqui de “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação. Neste caso trata-se de ator com maior capacidade de atuação na arena política, diante dos outros atores aqui citados. Ele que faz a roda da pequena-política rodar.

           Acompanhando a imagem a baixo, iniciemos olhando para a classe trabalhadora em geral, que aqui chamaremos de população votante. Esta, analisa a situação de Alvorada, na posição de eleitor. Alguém que vota, esperando que a vida melhore, esperando retorno do Estado, escola, saúde, asfalto. Cria-se uma certa necessidade, uma demanda não assistida.

             O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, vê nessa demanda um nicho de ligação clientelista. Uma vez remediada, mesmo que deforma limitada, essa determinada necessidade, fica aberta a possibilidade de uma retribuição (voto, campanha...). O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, utiliza de dispositivos de clientelismo, visando ser alguém presente na vida do sujeito da população votante, esperando em troca a recompensa política. Os dispositivos de clientelismo podem ser os mais diversos que vão desde troca direta de comida por voto direto, passando por uma vaga de emprego, por camisetas para times de futebol locais, até um galeto com cerveja. Via de regra, esses dispositivos respondem às necessidades que deveriam ser sanadas com políticas públicas.


            Perceba que aqui está o combustível da pequena política. A falta de ação do Estado passa ser um projeto frutífero para a pequena política. A ausência de ações estruturadas, abre brechas para as necessidades da população e por consequência, para as janelas de oportunidade do clientelismo. Pensemos no caso das enchentes do bairro Americana ou Maria Regina. Vale mais (aqui ciente que não se trata de uma ação simples, mas que não se faz sem comprometimento político e projeto de transformação) enchentes constantes, gerando uma centena de necessidades (telhas, ajuda, roupas, uniformes de futebol ...), ou resolver de fato o problema das pessoas. Em outras palavras, o que dá mais poder: a dominação material e de consciência por parte dos representantes da burguesia ou um projeto de emancipação para os trabalhadores? A dominação gera manutenção de poder.


           Do outro lado, a população votante, aqui vítima de um processo histórico de dominação vê nos dispositivos de clientelismo - mesmo que as vezes com certa desconfiança- , alternativas viáveis de sanar suas demandas: “Aquele vereador é bom, ao menos ele se importa com nós, veio aqui no dia da enchente me entregar lona”. Note bem: o que claramente pode ser considerado como corrupção, na verdade acaba virando um modo de sobrevivência, por parte da população que pouca influência política, mas com uma quantidade enorme de demandas.

             Na outra ponta, encontra-se o empresário ou pessoa sem cargo político, com certa influência política, que não precisa ser alguém com grande capital acumulado, mas que possua certa capacidade de relacionamento com o “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação. Nesse caso, a relação não se estabelece da mesma forma do que com a população em geral. Ou achava que os dispositivos de clientelismo saíam do salário do vereador? Na verdade, o clientelismo é mantido com os recursos que podem ser recolhidos com mecanismos de influência, que podem ser ou propina direta, ou mesmo materiais que são repassados no clientelismo. A lona que vai para tapar o buraco da casa na enchente, pode ter sido doada pelo dono da casa de ferragens que quer algum beneficiamento político, e entregue pelo “político”, que reproduz a pequena política.

 
               Os beneficiamentos políticos, almejados pelo empresário ou pessoa sem cargo político, com certa influência política, podem ser os mais diversos. Desde influência política no cenário local, até mesmo recursos próprios de beneficiamento legal (colocar asfalto em frente a uma loja de ferragens...).

               O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, que não respeitar a lógica da pequena política dificilmente terá êxito, justamente por se tratar de um ciclo fechado em que todas as partes são dependentes entre si. Obviamente, não tratamos de postulados universalizantes, mas de demarcações tradicionais de atores que frequentemente são vistos. Nem toda a população votante, há de se submeter ao ciclo da pequena-política, mas esse se faz tão presente, que dita de forma geral as regras do funcionamento político, e em especial, no nosso exemplo de Alvorada. Pois é muito fácil identificar aqui, monopólios de poder, indisponibilidade de renovação, e uma atuação política por parte da população geral muito dependente de clientelismos de ocasião. Também por isso, grande parte das propostas de suposta renovação política apresentadas, não passam de modernizações do velho ciclo da pequena política. Para mudar essa realidade, as eleições não resolvem. Pelo trabalho de base e ação política que motive a organização popular, desde os locais de trabalho, de estudo e de moradia. Estímulo a independência e respeito à classe trabalhadora, em suas organizações. Ampliação da política, para além das trocas de favores e das mentiras, para a criação de um novo poder, que repudie a pequena política




 

sábado, 6 de junho de 2020

Tristes constatações



Márcia Antunes
Artista visual, arte terapeuta, educadora e artesã, bordadeira, ex-punk, reikiana, atéia, motoqueira, viciada em livros, chá e filme francês







     Tem algo de muito grotesco nesta história da morte do pequeno Miguel que me assusta. A mãe decidiu falar da sua perda e denunciar o ocorrido, só depois de entender que não foi um simples equívoco.
    Ela fala de modo triste, óbvio, mas quase RESIGNADA. Como se a MORTE DE UM FILHO fosse sendo banalizada apenas pelo fato dele ser negro! E vamos nos consternando, vendo a foto de seu rostinho, criando hashtags de indignação, como se algo fosse nos livrar da dor.
    Não que o luto tenha um protocolo rígido a ser seguido, mas ao ver as notícias sobre este caso SURREAL (a empregada nem era deles, mas funcionária da prefeitura), a gente vai normalizando a estupidez que é a morte, nos ensinando que este mundo “doido” é assim mesmo.
     Mirtes, a mãe do menino, é apenas mais uma mãe que sente na carne sofrida, o NOJO e indiferença com que tratam empregados.
     Estavam todos infectados pelo covid e mesmo assim, não a dispensaram. Tinham 20 mil reais pra fiança, mas não a dispensaram.
   Esta maldita herança escravocrata normaliza as relações precárias de trabalho das empregadas (na maioria, negras). Desumanizando a PESSOA por trás da função. Então, seu filho era apenas um apêndice incômodo a ser tolerado; uma mancha de sangue no piso térreo, que quase nem se nota do alto das torres brancas.
    O mundo pandêmico não está pior. As pessoas apenas estão perdendo a vergonha de serem cretinas!







quarta-feira, 3 de junho de 2020

Alvorada: a desproteção como nossa realidade



Rodrigo S. Nunes

Doutor em Serviço Social pela PUCRS
Pesquisador do NEPES 
Núcleo de Estudos em Políticas e Economia 
Social.






Apresento aqui para aos meus conterrâneos e para todos os demais interessados alguns indicadores referentes ao município de Alvorada/RS. Abarcam-se também dados mais globais e atuais destes tempos de pandemia, mas principalmente trata-se de um estudo investigativo sobre a Situação de Rua, realizado entre os anos de 2012 e 2013.
A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para os que, sem recursos, dormem circunstancialmente sob marquises [...] ou pode constituir-se em um modo de vida, para os que já tem na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações. O que unifica esses processo é o fato de que, tendo condições de vida extremamente precárias, circunstancialmente ou permanentemente, utilizam a rua como abrigo ou moradia. O que diferencia esses processos é o grau maior ou menor de inserção no mundo da rua (Vieira; Bezerra; Rosa, 2004, p. 93-94)

Assim a situação de rua é percebida como um processo. Este Processo de Rualização pode ser iniciado na esfera doméstica, esfera das relações primárias, ou seja pode iniciar dentro de casa e, por isso, pode ser prevenido. Situações e conflitos familiares podem ser verificados em 32,5% das motivações dos sujeitos em situação de rua entrevistados na pesquisa censitária de Porto Alegre (2016).
São processos que geralmente são agravados pelo problema do desemprego que representa uma forte pressão sobre as políticas de seguro social e de renda mínima que, diante de uma crise fiscal e da hegemonia neoliberal, servem para justificar a redução da universalidade e da magnitude das políticas de proteção social. Diante disso, aumentam as desigualdades sociais e com elas o contingente de destituídos de direitos.
Por outro lado, nossos estudos também desvendam a fragilidade dos municípios trabalharem com os dados. As Políticas Públicas têm a gestão da informação como uma de suas funções. A ausência de sistemas de informações, para o cruzamento e tratamento de todos os dados, desencadeia no que podemos chamar de desmonte da Proteção Social, o que hoje se acelera com a pandemia da Covid19. Agora, independente da cientificidade dada aos dados, a realidade se mostra mais perversa, principalmente em alguns territórios. Sem dados, num território vivido, se nega direitos e silenciam-se violências.
Das pessoas com mais de 15 anos em extrema pobreza, em Alvorada, 467 não sabiam ler ou escrever, o que representava 15,7% dos extremamente pobres nessa faixa etária (MDS, 2013, p.2). Outro exemplo de vulnerabilidade social no município é a ocorrência de 132 homicídios no ano de 2011, sendo 85 jovens de 15 a 29 anos (MS, 2013). Na última década, os homicídios no município aumentaram representando uma variação de 3,3% no total de homicídios por ano.
A construção do conhecimento da realidade social brasileira para subsidiar a política social pública precisa entender a população e a demanda como agentes vivos, com capacidades e forças que interagem e vivem coletivamente em um dado território como expressão dinâmica de um espaço social (SPOSATI, 2007, p. 445).

Dando prosseguimento aos dados do Ministério da Saúde, como mais um exemplo de vulnerabilidade social e reiterando a necessidade de integralidade nas ações realizadas pelo poder local, destaca-se a infeliz marca de segundo lugar em casos de HIV/Aids, entre os municípios brasileiros com mais de 50 mil habitantes. Alvorada tem uma incidência de 81,8 casos por 100 mil habitantes (MS, 2013).
Importante destacar que nossa realidade municipal é formada pela presença de trabalhadores temporários, por tarefa e pela precarização das relações de trabalho. O que já apontavam para a racionalização de contratação e o aumento dos excluídos, isto é, fora do mercado de trabalho. São dados que já apontavam como consequência a redução da proteção sanitária e a insuficiente nutrição, inabilitando muitas vezes a capacidade de se sair do ciclo de pobreza para certo número de famílias, mesmo após a saída da crise financeira pelos estados nacionais.
Outro alarmante dado aparece na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua, 2019), quando no Brasil a renda de 1% da parcela mais rica da sociedade correspondeu a 33,7 vezes a renda da metade da população mais pobre.
Como num jogo, na macro realidade social, percebe-se o Mercado e o Estado utilizando-se de mecanismos da necropolítica, ou política de morte, quando nesta conjuntura além do descaso com o meio ambiente das violências policiais, se aplicam políticas de teto dos gastos, todo o tipo de precarização do trabalho, reforma da previdência, dentre outras.
As políticas de proteção social que surgiram com muita improvisação hoje se apresentam com o agravante de uma pandemia que impactou a produção e a circulação de mais da metade da população mundial. As garantias de proteção e acolhimento deslocaram-se para a solidariedade e voluntariado. A solidariedade, a caridade e as ações filantrópicas muitas vezes são aproveitadas como barganha por políticos e empresários, o que na verdade é de direito do cidadão.
Na medida em que, por exemplo, a população em situação de rua não tem acesso na área da saúde, as dificuldades de inclusão nas demais áreas se tornam frustrantes e pontuais, considerando no espaço da rua uma diversidade de situações que envolvem saúde mental, uso abusivo de álcool e outras drogas, sofrimento psíquico, etc.
Em relação as perdas do período de pandemia, o Banco Mundial (2020) convoca os governos a assumirem. É urgente a necessidade de dispor de mais recursos para os cuidados em saúde (no Brasil 70% da pop. depende exclusivamente do SUS), também tipos de seguros-desemprego, transferências de renda para trabalhadores por conta própria e assistência aos mais vulneráveis. E acesso às linhas de credito e garantias estatais às empresas, principalmente as pequenas e médias. O Brasil parece que vai na contramão e “joga essa conta no colo” de empregadores, empregados e desempregados.
Em 2017, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, Alvorada/RS disparou no indesejado posto de cidade mais violenta do estado do Rio Grande do Sul. Alvorada também tem o pior PIB per capita do estado. E apenas 10,8% da população tinha ocupação (2015). Está na 12ª posição como a cidade mais violenta do Brasil, com 90 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Um desafio está no desocultamento das desproteções sociais nos bairros e guetos da cidade, onde como única alternativa, até os sujeitos que vivenciam a situação de rua estão sendo cooptados para trabalhar para o tráfico de drogas, na função conhecida como “biqueira” ou de “aviãozinho”. A necessidade de lançar na agenda municipal prioridades em relação aos processos de rualização e sua prevenção é inquestionável.
Na ausência de políticas públicas, onde nem o planejamento de lavatórios em locais estratégicos para que as pessoas que circulam na rua pudessem lavar as mãos, e sobre as ações de solidariedade, temos como um belo exemplo o Movimento Nacional da População em Situação/RS, que em Porto Alegre está garantindo distribuição de algumas cestas com alimentos e materiais de higiene. Também tem um trabalho realizado na Amada Massa (pães especiais com farinha orgânica que são vendidos por assinatura e colabora para a autonomia e geração de renda das pessoas em vulnerabilidade social), que neste período de distanciamento social está fechada para a produção e entrega aos assinantes, mas produz e entrega lanches para os sujeitos que estão na rua e ainda garante a renda de seus colaboradores. Isso somado ao Jornal Boca de Rua, confeccionado pelos próprios sujeitos que vivenciam a situação derua, que neste período em que não se pode vendê-lo no semáforo, está on-line (pela 1ª vez) e garantindo a renda dos colaboradores, para que não voltem a sobreviver ou morar nas ruas.
Destaca-se a relevância de promover mecanismos para a participação e de protagonismo dos munícipes. Neste sentido, já temos expressos esses avanços na nova Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS, aprovada em dezembro de 2012, que aponta estratégias para a materialidade da democracia e da participação da população usuária. O estímulo à participação e ao protagonismo é condição fundamental para viabilizar e garantir direitos. Há a necessidade de intervenções fora da região central dos municípios onde os sujeitos nem sequer tem acesso à informação sobre seus direitos.
Considerando que até nos EUA o desemprego em abril chegou em 14,7%, com 33 milhões de pedidos de seguro-desemprego, e no Brasil pode ser a maior recessão da história, como proteger os cidadãos de forma distributiva para aqueles que não tem a capacidade de consumo ou com baixa renda per capta?
Na medida em que não se trabalha com indicadores de efetividade conectados com indicadores de alcance social, tão relevantes, pode-se afirmar que não há ou está muito frágil o planejamento das Políticas de Proteção Social. Neste sentido, os professores Wasmália Bivar e Paulo Jannuzzi (2018), temerosos em relação aos riscos, questionam: “Afinal, quem se lança no oceano sem uma bússola?”



Referências Bibliográficas
AGÊNCIA IBGE – NOTÍCIAS. PNAD Contínua 2019: rendimento do 1% que ganha mais equivale a 33,7 vezes o da metade da população que ganha menos. 06/05/2020. 20 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013- agencia-de-noticias/releases/27594-pnad-continua-2019-rendimento-do-1-que-ganhamais-equivale-a-33-7-vezes-o-da-metade-da-populacao-que-ganha-menos
Acesso em: 02/06/2020.

BANCO MUNDIAL. La Economía en Los Tiempos del Covid-19. Informe Semestral de la Región de América Latina y el Caribe, Abril de 2020.

NUNES, Rodrigo dos Santos. A relação entre sujeitos em situação de rua e o poder local: protagonismo ou passividade? Dissertação de mestrado. Porto Alegre. PPGSS/PUCRS, 2013.

NUNES, Rodrigo dos Santos Nunes. O enfrentamento aos processos de rualização: os sujeitos em situação de rua e as possibilidades de protagonismo. 15º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais. Olinda/PE. CBAS, 2016.

NUNES, Rodrigo dos Santos Nunes. Como a População em Situação de Rua está contemplada no processo de Vigilância Socioassistencial? Tese de doutorado. PPGSS/PUCRS, 2019






segunda-feira, 25 de maio de 2020

Pandemia e violência doméstica contra as mulheres surdas



Lahis Brandão
Estudante de Tradução e Interpretação em Libras nas instituições
UFRGS e IFRS; Feminista (não do tipo divertido); Bodypiercer; Gateira;
Quer saber: Quem mandou matar Marielle?







     A violência doméstica é uma realidade inegável no Brasil, uma vez que seus números são alarmantes. Um levantamento realizado em 2019 indica que o nosso país registre um caso de agressão a mulher a cada 4 minutos, isso sem mencionar todos os acontecimentos que não chegam a ser registrados. Não à toa, este mesmo ano finalizou com mais de um milhão de processos de violência doméstica, sendo 563,7 mil novos casos (CNJ, 2020). Somente em janeiro de 2020 houve um aumento de 233% nos casos de feminicídio consumado. É neste mesmo contexto que o Covid-19 chegou ao Brasil, forçando muitas mulheres a permanecerem trancadas em seus lares junto com seus parceiros, ou seja, de quarentena com o agressor.

    Na segunda semana de março de 2020 a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou pandemia do novo Coronavírus Covid-19. Desde então, muitos países começaram a tomar medidas para conter o vírus, sendo uma das medidas mais importantes para combater a proliferação deste, o ato de ficar em casa e evitar ao máximo o contato com outras pessoas.

     Embora o governo federal brasileiro esteja mostrando uma certa resistência para seguir as essas orientações, ainda assim muitos governos estaduais agiram de maneira mais ágil e em consenso com a OMS, decretando o fechamento de comércios não essenciais, e colocando muitas famílias dentro de suas casas por tempo integral. Por meio disso, muitas mulheres trabalhadoras e/ou donas de casa ficaram impossibilitadas de sair de seus lares, seja para trabalhar ou para levar seus filhos a escola, uma vez que as instituições de ensino também foram fechadas para evitar aglomerações. Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro se nega a seguir as orientações da OMS, também não parece se preocupar em criar novas políticas públicas para as mulheres, levando em consideração o contexto da pandemia de Covid-19 e o quanto isso tem potencializado o sofrimento e a insegurança das mulheres vítimas de violência doméstica.

     Infelizmente essas têm sido as condições em que se encontram milhares de mulheres em todo o Brasil. O misto de insegurança, exposição à violência, vulnerabilidade econômica, sobrecarga de trabalho doméstico e incerteza sobre a possibilidade de melhorias, tem assombrado as mulheres brasileiras.
Se anteriormente a pandemia as estimativas de mulheres que sofrem violência doméstica e não denunciam (pelos mais variados motivos) já era bastante alta, atualmente acreditamos que esse número possa ter multiplicado, uma vez que a quantidade de mulheres que denunciam dobrou, não apenas no Brasil mas e vários outros países. Em relação às mulheres que não estão denunciando, os motivos podem ser diversos, uma nova razão seria o medo de sair de casa e contrair o coronavírus, o que acaba impedindo essas mulheres de procurar ajuda, assistência médica ou legal perante episódios de violência doméstica. É importante considerar que boa parte das mulheres recorrem primeiramente a um hospital quando sofrem violência, e neste momento de pandemia, podem vir a sentir que o ambiente seja mais perigoso do que seguro.

     O isolamento social que no Brasil está sendo apelidado de “quarentena” faz com que as vítimas de violência doméstica tenham ainda menos contato com suas redes de apoio, ao mesmo tempo em que ficam ainda mais a deriva do agressor, vulneráveis aos mais diversos conflitos, agressões físicas, psicológicas e/ou verbais, crises de ciúmes, controle, etc. No entanto, a quarentena não pode ser vista como a causa da violência doméstica, ela apenas potencializa algo que já é uma realidade no Brasil e no mundo há muitos anos.
   O machismo está presente em todas as camadas da nossa sociedade. Se trata da ideia de que a mulher é inferior ao homem, e posse dele. De maneira consciente ou não, os homens objetificam as mulheres independente do nível da relação que tenham com elas. Por meio disso, muitos relacionamentos abusivos são construídos mantendo a mulher em posição subalterna, sempre desfavorecida em detrimento do homem. Infelizmente, essas atitudes e pensamentos machistas não podem “dar uma trégua” neste momento de crise, não é como se fosse algo facilmente controlável em nossa sociedade, uma vez que está enraizado nela.
     O machismo não fica de quarentena, não é um comportamento que se perde em tempos de Coronavírus, mas o machismo está presente na quarentena das mais variadas famílias porque ele antecede essa situação de pandemia.
    Quando falamos de mulheres que são atravessadas pela violência doméstica, acabamos por nos esquecer de que a classe Mulher também tem sua diversidade. Nossas políticas são pensadas para o atendimento de mulheres ouvintes, excluindo uma parcela bastante significativa da população. O telefone lilás (Disque 180), por exemplo, é um recurso para denunciar violência contra a mulher, mas que ao mesmo tempo não pode ser utilizado por mulheres surdas. Talvez neste período de quarentena em que pelo fato das mulheres estarem isoladas com seus agressores, causando uma maior dificuldade de realizar denúncias por telefone, pensemos em outras políticas para atender a todas as mulheres surdas e ouvintes.

     A decisão de ir até uma delegacia registrar uma ocorrência não costuma ser fácil, afinal alguns fatores costumam impedir, como por exemplo: Ameaça a sua vida e a vida de seus filhos ou parentes, vergonha, medo de serem desacreditadas e culpabilizadas, medo de enfrentar o processo e “não dar em nada” e atualmente, medo do vírus entre vários outros motivos. Agora, imaginemos que além destes há ainda um outro fator: Não há alguém que fale a sua língua para lhe atender. Esta é a realidade das mulheres surdas no nosso país.
    Quando uma mulher surda decide ir até uma delegacia, precisa se preocupar em levar alguém que possa a ajudar a realizar a comunicação, pois as delegacias brasileiras não oferecem profissionais tradutores e intérpretes de Libras. Cabe a mulher surda ter uma preocupação a mais que qualquer outra mulher ouvinte, ela precisa buscar, sozinha, uma maneira de garantir que será vista.
Geralmente, as mulheres em situação de violência perdem seus laços familiares e sociais.      Os homens violentos e ciumentos costumam controlar os movimentos da parceira. Por isso, em muitos casos as relações com família e amigos ficam restritas, ocultando a situação. Nessa lógica, uma mulher distante da sua rede de apoio é uma mulher ainda mais vulnerável. No caso da mulher surda, ela pode ficar impossibilitada de solicitar a alguém de confiança para possibilitar a comunicação na delegacia, sendo essa mais uma barreira que impeça a mulher surda de denunciar, já que ela “depende” de uma terceira pessoa. A situação fica mais crítica com a pandemia, uma vez que o isolamento social, tão necessário para conter o vírus, pode também acabar por conter essas mulheres silenciadas em seus lares.

     As mulheres com deficiência são mais vulneráveis à violência doméstica quando comparadas com as mulheres ouvintes que não tem deficiência. Em 2019, o tema foi debatido na CPI do Feminicídio do Rio de Janeiro. A estimativa apresentada foi de que as
mulheres com deficiência tenham 4 vezes mais chance de sofrer algum tipo de violência
quando comparado com as mulheres sem deficiência. Uma dificuldade analisada nesta
atividade também foi a da ausência de dados nos registros, o que dificulta o levantamento
de dados estatísticos. É importantíssimo que os registros policiais contenham a informação
de que a mulher possui deficiência ou não. E neste caso, é importante acrescentar a surdez como uma outra característica, já que há uma diferença bastante significativa entre uma mulher com deficiência e uma mulher surda. Quanto a isso, Perlin e Vilhalva fazem a
seguinte afirmação: A mulher surda é comparada à mulher deficiente. Muitas vezes a sociedade continua com a educação colonialista sobre a mulher surda sem noção de sua
diferença. No momento em que somos chamadas de deficientes, somos comparadas às mulheres ouvintes. Essa é uma representação que assume aspectos de discriminação, de nossa língua e cultura, pelo completo desconhecimento do valor linguístico que a língua de sinais possui e também pelo completo desconhecimento da significação do ser mulher surda, ou seja, ser uma pessoa que entende o mundo pelos olhos e necessita de informação em sua língua visual (Perlin e Vilhalva, 2016, p.6)

    As medidas de identificação em relação a ter ou não alguma deficiência, se presentes nos registros policiais, são vitais para que possamos avançar em relação a existência de dados estatísticos, para além disso é importante que as mulheres surdas tenham um registro a par, pois a partir disso poderemos mapear as regiões onde há mais necessidade da presença de tradutores e intérpretes de Libras. Afinal, essa é uma necessidade específica da comunidade surda e deve ser pensada e construída mesmo em tempos de Coronavírus, onde estratégias precisam ser tomadas para que essas mulheres tenham condições e a garantia de realizar uma denúncia com segurança.

    É urgente que um recorte seja feito em relação às mulheres surdas para que possamos avançar em políticas públicas para todas. Afinal, a barreira linguística é o principal fator que impede mulheres surdas de denunciar violência doméstica, e em tempos de pandemia isso precisa ser considerado antes que traumas e danos irreparáveis cheguem a acometer mais mulheres. Sabemos que temos um inimigo invisível nas ruas, famoso Covid-19, no entanto, dentro dos lares de milhares de mulheres em todo o país há um inimigo visível, embora esteja passando quase que imperceptível no meio dessa crise. É necessário que ambos sejam contidos.


Referências:
AGÊNCIA BRASIL. Mulheres com deficiência têm mais dificuldade para denunciar violência.
07 de ago. de 2019. Disponível em: <​ https://agenciabrasil.ebc.com.br/diitos-humanos/not
icia/2019-08/mulheres-com-deficiencia-tem-mais-dificuldade-para-denunciar​ > Acesso em:
16 de abr. de 2020.

BBC NEWS. 11 Motivos que levam as mulher a deixar de denunciar casos de assédio e
violência sexual. 13 de out. de 2017. Disponível em: <​ https://www.bbc.co m/portuguese/
brasil- 41617235​ > Aceso em: 16 de abr. de 2020.

CNJ. Processos de violência doméstica e feminicídio crescem em 2019. 09 de mar. de 2020.
Disponível em: ​ https://www.cnj.jus.br/processos-de-violencia-domestica-e- feminicidio-cr
escem-em-2019/​ Acesso em: 15 de abr. de 2020.

COSTA, Giulia. Mulheres surdas não conseguem denunciar violência doméstica por falta de
intérpretes. O Globo. 14 de abr. de 2019. Disponível em: <​ https://oglobo.glo
bo.com/sociedade/celina/mulheres-surdas-nao-conseguem-denunciar-violencia-domestica-por-falta-de-interpretes-23597017​ > Acesso em: 16 de abr. de 2020.

FOLHA DE S.PAULO. Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante quarentena
por Coronavírus. São Paulo. 15 de abr. de 2020. Disponível em:<​ https://www1.folha.uol.com
.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarente
na-por-coronavirus.shtml​ > Acesso em: 15 de abr. de 2020.

ISTOÉ. Justiça registrou 563 mil novos casos de violência doméstica em 2019. 11 de mar. de
2020. Disponível em: <​ https://istoe.com.br/​ justica-registrou-563-mil-novos-casos-de-violenc
ia-domestica-em-2019/> Acesso em: 15 de abr. de 2020.

OMS. Preguntas y respuestas sobre la enfermedad por coronavirus (COVID-19). c2019.
Disponível em: < ​ https://www.who.int/es/emergencies/diseases/novel-coro navirus-2019
/advice-for-public/q-a-coronaviruses​ > Acesso em: 15 de abr. de 2020.

PERLIN, Gládis e VILHAVA, Schirley. Mulher surda: elementos ao empoderamento na política
afirmativa. INES - Revista Forum. Rio de Janeiro. n. 33. jan-jun 2016. Disponível em: ​ http://w
w​ w.porsinal.pt/index.php?ps=artigos&idt=artc&cat=27&idart= 453 Acesso em: 16 de abr.
de 2020.