domingo, 6 de setembro de 2020

A máscara que encobre a história e a Morte Rubra: Prenúncios distópicos de um futuro próximo?

 

Priscila Klein da Silva

Professora da Rede Municipal de Alvorada

Pedagoga – Orientadora Educacional / ULBRA

Especialista em Educação de Jovens e Adultos e Educação de Privados de Liberdade / UFRGS

Mestra em Educação / PUCRS



As manchas escarlates no corpo, especialmente aquelas no rosto da vítima, representavam a exclusão que a privava da assistência e da compaixão de seus semelhantes. [...] Apesar disso, o príncipe Próspero se sentia feliz, intrépido e sagaz (POE, 2018, p.15).


O trecho citado faz parte do conto de terror de Edgard Allan Poe, intitulado “A Máscara da Morte Rubra”, escrito em 1842. Pretendo aqui traçar um paralelo entre o conto anunciado e o contexto atual em que estamos vivenciando, com intuito de que possamos compreender algumas das consequências quando não encaramos a História e todas as suas ruínas (BENJAMIN, 2012).

Desde março, aqui no Brasil, temos nos deparado com uma Pandemia de proporção mundial e alto poder de contágio: a Covid-19. Não me aterei em explicá-la cientificamente, pois acredito que há muitas informações nos meios de comunicação, nacional e internacional, que mensuram como este vírus se comporta em nosso organismo, e/ou quais as precauções que devemos ter para não contrair esta doença (embora nem todos possuam condições para tal prevenção).

No conto de Allan Poe, uma peste também dizimava o país, e nenhuma como ela havia sido tão fatal. Era chamada de “Morte Rubra”, porque o “sangue representava a sua imagem e sua marca” (POE, 2018, p.15). Os sintomas eram caracterizados por dores agudas, tonturas, sangramento pelos poros, seguidos de deterioração (POE, 2018). No país, pouco foi feito para minimizar a peste que o assolava. No reino do príncipe Próspero não foi muito diferente.

Quando a população de seus domínios havia se reduzido à metade, ele reuniu mil amigos saudáveis e festivos, dentre cavalheiros e damas de sua corte, e com eles se recolheu em uma de suas abadias acasteladas (POE, 2018. p.15).


Assim como no reino do príncipe Próspero, desde que tivemos que reorganizar nossos modos de vida em razão da pandemia, presenciamos situações em que alguns que possuem certos privilégios, protegem somente aqueles que fazem parte de seu círculo. Mas, o que tem me intrigado, de modo a tirar meu sono em algumas circunstâncias, é como este mesmo comportamento opera em nós, classe trabalhadora. Chama-me atenção como este vírus tem agido em nosso emocional. Como a pandemia tem influenciado em nossa ética, em nossa noção de coletividade, em nossa capacidade de ressignificar modos de vida (ou em conservá-los).

No reino do príncipe Próspero, mais precisamente na abadia acastelada em que ele e seus convidados estavam confinados de tudo, inclusive da realidade, vivia-se num mundo paralelo, com muitos atrativos artísticos, musicais e tudo o mais que pudesse manter todos entretidos, para que o real não ocupasse suas memórias.

Walter Benjamin nos esclarece que “a verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento” (2012, p.07).

Nesse sentido, assim como no reino do príncipe Próspero, também vivemos um momento negacionista em relação a pandemia, onde uma parte da população faz questão de não tomar os cuidados necessários para evitar a contaminação pela covid-19. Prefere “viver a vida”, se reunir com familiares e amigos, não usar máscaras em nenhuma hipótese, ir a praia normalmente. Assim como o grande baile de máscaras organizado no reino de Próspero, onde todos os convidados, presos em seus delírios de superioridade, pensavam que estariam a salvo da Morte Rubra.

Mas, não são somente os negacionistas que têm este comportamento, muitas vezes incrédulo, outras vezes irresponsável. Parte da população, esta que se manifesta nas redes sociais, preocupada com a pandemia e com o comportamento das outras pessoas, frequentemente também não toma todos os cuidados necessários para proteger-se e proteger os seus. Há uma necessidade de manter aquilo que era cotidiano. Nas pequenas coisas, como fazer as compras no mercado (“ninguém compra o tomate do jeito que eu gosto”).

Percebo que, por um tempo, um véu encobriu o conservadorismo que habita em algumas pessoas. Com uma proporção micro, mas com significação semelhante ao conceito, conservadorismo aqui se refere ao fato de manter comportamentos e crenças que, de alguma forma, a situação atual nos mostra que há necessidade de desvendar. São valores que precisam ser repensados, para a preservação da vida humana. Mas há resistência, mesmo daqueles que se intitulam progressistas, ou que possuem uma visão mais à esquerda.

O baile de máscaras que ocorreu no reino de Próspero foi o maior que já aconteceu no local. Foi pensado com todo o cuidado para que não houvesse nenhuma tentativa de invasão de fora do palácio, em razão do risco de contágio. Edgard Allan Poe foi magistral na riqueza de detalhes sobre a festa e sobre o palácio. Tudo transcorria bem, todos se divertiam, até que ao soar as doze badaladas do relógio, surge um ser misterioso, mascarado. “A figura era alta e esquelética e estava coberta da cabeça aos pés com uma vestimenta mortuária” (POE, 2018, p.18). O príncipe Próspero, mesmo apresentando receio quanto a esta criatura, não podia deixar transparecer aos seus amigos e por isso, partiu para cima do estranho. O mascarado misterioso acabou com a vida de todos no palácio. “Agora a presença da Morte Rubra era reconhecida [...] E a escuridão, a decadência e a Morte Rubra reinaram com total domínio” (POE, 2018, p.19).

E quanto a nós, em 2020 d.C, será que conseguiremos encarar a história de frente, reconhecendo-a e “escovando-a a contrapelo” (BENJAMIN, 2012), superando comportamentos que só mantém o status quo e buscando outro modelo de sociedade? Ou deixaremos a Morte Rubra do progresso nos arrastar ladeira abaixo, assim como fez no reino de Próspero?


REFERÊNCIAS:


BENJAMIN, Walter. O anjo da História. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.


POE, Edgard Allan. A máscara da Morte Rubra. Tradução de Ana Karina Borges Braun. Caderno de Tradução, Porto Alegre, n.42 jan/jun, 2018.