sábado, 6 de junho de 2020

Tristes constatações



Márcia Antunes
Artista visual, arte terapeuta, educadora e artesã, bordadeira, ex-punk, reikiana, atéia, motoqueira, viciada em livros, chá e filme francês







     Tem algo de muito grotesco nesta história da morte do pequeno Miguel que me assusta. A mãe decidiu falar da sua perda e denunciar o ocorrido, só depois de entender que não foi um simples equívoco.
    Ela fala de modo triste, óbvio, mas quase RESIGNADA. Como se a MORTE DE UM FILHO fosse sendo banalizada apenas pelo fato dele ser negro! E vamos nos consternando, vendo a foto de seu rostinho, criando hashtags de indignação, como se algo fosse nos livrar da dor.
    Não que o luto tenha um protocolo rígido a ser seguido, mas ao ver as notícias sobre este caso SURREAL (a empregada nem era deles, mas funcionária da prefeitura), a gente vai normalizando a estupidez que é a morte, nos ensinando que este mundo “doido” é assim mesmo.
     Mirtes, a mãe do menino, é apenas mais uma mãe que sente na carne sofrida, o NOJO e indiferença com que tratam empregados.
     Estavam todos infectados pelo covid e mesmo assim, não a dispensaram. Tinham 20 mil reais pra fiança, mas não a dispensaram.
   Esta maldita herança escravocrata normaliza as relações precárias de trabalho das empregadas (na maioria, negras). Desumanizando a PESSOA por trás da função. Então, seu filho era apenas um apêndice incômodo a ser tolerado; uma mancha de sangue no piso térreo, que quase nem se nota do alto das torres brancas.
    O mundo pandêmico não está pior. As pessoas apenas estão perdendo a vergonha de serem cretinas!







quarta-feira, 3 de junho de 2020

Alvorada: a desproteção como nossa realidade



Rodrigo S. Nunes

Doutor em Serviço Social pela PUCRS
Pesquisador do NEPES 
Núcleo de Estudos em Políticas e Economia 
Social.






Apresento aqui para aos meus conterrâneos e para todos os demais interessados alguns indicadores referentes ao município de Alvorada/RS. Abarcam-se também dados mais globais e atuais destes tempos de pandemia, mas principalmente trata-se de um estudo investigativo sobre a Situação de Rua, realizado entre os anos de 2012 e 2013.
A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para os que, sem recursos, dormem circunstancialmente sob marquises [...] ou pode constituir-se em um modo de vida, para os que já tem na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações. O que unifica esses processo é o fato de que, tendo condições de vida extremamente precárias, circunstancialmente ou permanentemente, utilizam a rua como abrigo ou moradia. O que diferencia esses processos é o grau maior ou menor de inserção no mundo da rua (Vieira; Bezerra; Rosa, 2004, p. 93-94)

Assim a situação de rua é percebida como um processo. Este Processo de Rualização pode ser iniciado na esfera doméstica, esfera das relações primárias, ou seja pode iniciar dentro de casa e, por isso, pode ser prevenido. Situações e conflitos familiares podem ser verificados em 32,5% das motivações dos sujeitos em situação de rua entrevistados na pesquisa censitária de Porto Alegre (2016).
São processos que geralmente são agravados pelo problema do desemprego que representa uma forte pressão sobre as políticas de seguro social e de renda mínima que, diante de uma crise fiscal e da hegemonia neoliberal, servem para justificar a redução da universalidade e da magnitude das políticas de proteção social. Diante disso, aumentam as desigualdades sociais e com elas o contingente de destituídos de direitos.
Por outro lado, nossos estudos também desvendam a fragilidade dos municípios trabalharem com os dados. As Políticas Públicas têm a gestão da informação como uma de suas funções. A ausência de sistemas de informações, para o cruzamento e tratamento de todos os dados, desencadeia no que podemos chamar de desmonte da Proteção Social, o que hoje se acelera com a pandemia da Covid19. Agora, independente da cientificidade dada aos dados, a realidade se mostra mais perversa, principalmente em alguns territórios. Sem dados, num território vivido, se nega direitos e silenciam-se violências.
Das pessoas com mais de 15 anos em extrema pobreza, em Alvorada, 467 não sabiam ler ou escrever, o que representava 15,7% dos extremamente pobres nessa faixa etária (MDS, 2013, p.2). Outro exemplo de vulnerabilidade social no município é a ocorrência de 132 homicídios no ano de 2011, sendo 85 jovens de 15 a 29 anos (MS, 2013). Na última década, os homicídios no município aumentaram representando uma variação de 3,3% no total de homicídios por ano.
A construção do conhecimento da realidade social brasileira para subsidiar a política social pública precisa entender a população e a demanda como agentes vivos, com capacidades e forças que interagem e vivem coletivamente em um dado território como expressão dinâmica de um espaço social (SPOSATI, 2007, p. 445).

Dando prosseguimento aos dados do Ministério da Saúde, como mais um exemplo de vulnerabilidade social e reiterando a necessidade de integralidade nas ações realizadas pelo poder local, destaca-se a infeliz marca de segundo lugar em casos de HIV/Aids, entre os municípios brasileiros com mais de 50 mil habitantes. Alvorada tem uma incidência de 81,8 casos por 100 mil habitantes (MS, 2013).
Importante destacar que nossa realidade municipal é formada pela presença de trabalhadores temporários, por tarefa e pela precarização das relações de trabalho. O que já apontavam para a racionalização de contratação e o aumento dos excluídos, isto é, fora do mercado de trabalho. São dados que já apontavam como consequência a redução da proteção sanitária e a insuficiente nutrição, inabilitando muitas vezes a capacidade de se sair do ciclo de pobreza para certo número de famílias, mesmo após a saída da crise financeira pelos estados nacionais.
Outro alarmante dado aparece na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua, 2019), quando no Brasil a renda de 1% da parcela mais rica da sociedade correspondeu a 33,7 vezes a renda da metade da população mais pobre.
Como num jogo, na macro realidade social, percebe-se o Mercado e o Estado utilizando-se de mecanismos da necropolítica, ou política de morte, quando nesta conjuntura além do descaso com o meio ambiente das violências policiais, se aplicam políticas de teto dos gastos, todo o tipo de precarização do trabalho, reforma da previdência, dentre outras.
As políticas de proteção social que surgiram com muita improvisação hoje se apresentam com o agravante de uma pandemia que impactou a produção e a circulação de mais da metade da população mundial. As garantias de proteção e acolhimento deslocaram-se para a solidariedade e voluntariado. A solidariedade, a caridade e as ações filantrópicas muitas vezes são aproveitadas como barganha por políticos e empresários, o que na verdade é de direito do cidadão.
Na medida em que, por exemplo, a população em situação de rua não tem acesso na área da saúde, as dificuldades de inclusão nas demais áreas se tornam frustrantes e pontuais, considerando no espaço da rua uma diversidade de situações que envolvem saúde mental, uso abusivo de álcool e outras drogas, sofrimento psíquico, etc.
Em relação as perdas do período de pandemia, o Banco Mundial (2020) convoca os governos a assumirem. É urgente a necessidade de dispor de mais recursos para os cuidados em saúde (no Brasil 70% da pop. depende exclusivamente do SUS), também tipos de seguros-desemprego, transferências de renda para trabalhadores por conta própria e assistência aos mais vulneráveis. E acesso às linhas de credito e garantias estatais às empresas, principalmente as pequenas e médias. O Brasil parece que vai na contramão e “joga essa conta no colo” de empregadores, empregados e desempregados.
Em 2017, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, Alvorada/RS disparou no indesejado posto de cidade mais violenta do estado do Rio Grande do Sul. Alvorada também tem o pior PIB per capita do estado. E apenas 10,8% da população tinha ocupação (2015). Está na 12ª posição como a cidade mais violenta do Brasil, com 90 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Um desafio está no desocultamento das desproteções sociais nos bairros e guetos da cidade, onde como única alternativa, até os sujeitos que vivenciam a situação de rua estão sendo cooptados para trabalhar para o tráfico de drogas, na função conhecida como “biqueira” ou de “aviãozinho”. A necessidade de lançar na agenda municipal prioridades em relação aos processos de rualização e sua prevenção é inquestionável.
Na ausência de políticas públicas, onde nem o planejamento de lavatórios em locais estratégicos para que as pessoas que circulam na rua pudessem lavar as mãos, e sobre as ações de solidariedade, temos como um belo exemplo o Movimento Nacional da População em Situação/RS, que em Porto Alegre está garantindo distribuição de algumas cestas com alimentos e materiais de higiene. Também tem um trabalho realizado na Amada Massa (pães especiais com farinha orgânica que são vendidos por assinatura e colabora para a autonomia e geração de renda das pessoas em vulnerabilidade social), que neste período de distanciamento social está fechada para a produção e entrega aos assinantes, mas produz e entrega lanches para os sujeitos que estão na rua e ainda garante a renda de seus colaboradores. Isso somado ao Jornal Boca de Rua, confeccionado pelos próprios sujeitos que vivenciam a situação derua, que neste período em que não se pode vendê-lo no semáforo, está on-line (pela 1ª vez) e garantindo a renda dos colaboradores, para que não voltem a sobreviver ou morar nas ruas.
Destaca-se a relevância de promover mecanismos para a participação e de protagonismo dos munícipes. Neste sentido, já temos expressos esses avanços na nova Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS, aprovada em dezembro de 2012, que aponta estratégias para a materialidade da democracia e da participação da população usuária. O estímulo à participação e ao protagonismo é condição fundamental para viabilizar e garantir direitos. Há a necessidade de intervenções fora da região central dos municípios onde os sujeitos nem sequer tem acesso à informação sobre seus direitos.
Considerando que até nos EUA o desemprego em abril chegou em 14,7%, com 33 milhões de pedidos de seguro-desemprego, e no Brasil pode ser a maior recessão da história, como proteger os cidadãos de forma distributiva para aqueles que não tem a capacidade de consumo ou com baixa renda per capta?
Na medida em que não se trabalha com indicadores de efetividade conectados com indicadores de alcance social, tão relevantes, pode-se afirmar que não há ou está muito frágil o planejamento das Políticas de Proteção Social. Neste sentido, os professores Wasmália Bivar e Paulo Jannuzzi (2018), temerosos em relação aos riscos, questionam: “Afinal, quem se lança no oceano sem uma bússola?”



Referências Bibliográficas
AGÊNCIA IBGE – NOTÍCIAS. PNAD Contínua 2019: rendimento do 1% que ganha mais equivale a 33,7 vezes o da metade da população que ganha menos. 06/05/2020. 20 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013- agencia-de-noticias/releases/27594-pnad-continua-2019-rendimento-do-1-que-ganhamais-equivale-a-33-7-vezes-o-da-metade-da-populacao-que-ganha-menos
Acesso em: 02/06/2020.

BANCO MUNDIAL. La Economía en Los Tiempos del Covid-19. Informe Semestral de la Región de América Latina y el Caribe, Abril de 2020.

NUNES, Rodrigo dos Santos. A relação entre sujeitos em situação de rua e o poder local: protagonismo ou passividade? Dissertação de mestrado. Porto Alegre. PPGSS/PUCRS, 2013.

NUNES, Rodrigo dos Santos Nunes. O enfrentamento aos processos de rualização: os sujeitos em situação de rua e as possibilidades de protagonismo. 15º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais. Olinda/PE. CBAS, 2016.

NUNES, Rodrigo dos Santos Nunes. Como a População em Situação de Rua está contemplada no processo de Vigilância Socioassistencial? Tese de doutorado. PPGSS/PUCRS, 2019