Rafael Freitas - Educador popular, coordenador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata
Rafael Melo - Enfermeiro e Sanitarista
O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS
O que chamamos aqui de pequena
política encontra as mais
diversas definições, explicações e abordagens. Preferimos pensar
a pequena política
a partir da nossa realidade e do marxista italiano Antonio Gramsci,
que enfrentava o fascismo primeiro, enquanto nós vivemos o avanço
fascista no tempo presente. Chamamos de pequena
política a forma como a
política é conduzida em Alvorada, ou seja, ações que servem para
manter as relações tradicionais entre governos e a classe
trabalhadora, que nem sonham em colocar no horizonte a superação
das classes, e o fim de um mundo com governantes e governados. Parece
uma ingenuidade ter como objetivo um mundo novo, com novos valores e
relações sociais. Mas a democracia representativa foi também algo
impensável durante o Brasil escravista, quando os abolicionistas
radicais eram “xingados” de comunistas. Independente do que o
caro leitor ou a cara leitora pense lendo essas linhas, as relações
sociais no Brasil irão mudar, como sempre se alteraram. E cada
prática em sociedade participa dessa variação.
Muitas
pessoas têm chamado a pequena
política de corrupção,
de velha política, entre outros apelidos. Pra nós, essas palavras
não têm dado conta da magnitude dos problemas que passamos. A
abordagem a partir da “corrupção”, com muita frequência, se
vale tão somente de aspecto como uma moralidade barata, quando não
seletiva. Também pessoaliza esquemas de corrupção em supostos
“políticos do mal”, excluindo da análise um sistema maior de
beneficiamento. As mais fervorosas manifestações contra a
corrupção, nos pareceram (talvez intencionalmente ou socialmente
produzido) direcionadas somente aos “corruptos” (corrompidos) sem
apontar os corruptores, no caso do congresso e do executivo nacional,
grandes empresários que muito mais têm a lucrar que os próprios
políticos “corruptos”.
A
leitura que trazemos aqui, é que esquemas de beneficiamento não
dependem - somente - de “políticos corruptos”, mas estruturam
todo um sistema, uma espécie de rito político brasileiro, que mais
tem a ver com as regras do jogo, que com boa ou má intenção. As
regras desse jogo não estão descoladas com a própria sociedade que
as criou.
O rito político brasileiro está
estruturado em certa sociedade constituída historicamente. O Brasil
é um país capitalista de economia dependente, com um Estado
historicamente clientelista com o grande Capital e perverso com a
classe trabalhadora. Chamamos atenção, para não pensarmos o Estado
como algo inerte ao Capital, pelo contrário. Desta forma o que muito
chama de “corrupção”, na verdade é a forma mais clássica de
funcionamento desse modo de ser do Estado burguês.
Preferimos,
portanto, falar de um ciclo
de pequena política, que
se sustenta e não está descolado de nossa (des)organização
social. Não basta tratarmos aqui de políticos bons ou malvados, mas
de um sistema de dominação que favorece os mais ricos e penaliza de
forma cruel os mais pobres.
Para
tornarmos o debate mais palpável, usaremos como exemplo a prática
política de nossa cidade: Alvorada. Alvorada é uma cidade pequena o
suficiente para expor com facilidade as práticas de pequena política
e grande o suficiente para que essas práticas sejam substanciais à
manutenção dos sistemas de poder. Mas afinal, o que é esse tal de
ciclo da pequena política, em Alvorada?
O
ciclo da pequena política
não tem um início. Se tem, nessa altura do campeonato já é
difícil de saber onde inicia e onde termina. Mas tem um ponto forte,
que estamos chamando aqui de “político” com cargo eletivo ou de
confiança, com poder de ação. Neste caso trata-se de ator com
maior capacidade de atuação na arena política, diante dos outros
atores aqui citados. Ele que faz a roda da pequena-política rodar.
Acompanhando
a imagem a baixo, iniciemos olhando para a classe trabalhadora em
geral, que aqui chamaremos de população votante. Esta, analisa a
situação de Alvorada, na posição de eleitor. Alguém que vota,
esperando que a vida melhore, esperando retorno do Estado, escola,
saúde, asfalto. Cria-se uma certa necessidade, uma demanda não
assistida.
O
“político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de
ação, vê nessa demanda um nicho de ligação clientelista. Uma vez
remediada, mesmo que deforma limitada, essa determinada
necessidade, fica aberta a possibilidade de uma retribuição (voto,
campanha...). O “político” com cargo eletivo ou de confiança,
com poder de ação, utiliza de dispositivos de clientelismo, visando
ser alguém presente na vida do sujeito da população votante,
esperando em troca a recompensa política. Os dispositivos de
clientelismo podem ser os mais diversos que vão desde troca direta
de comida por voto direto, passando por uma vaga de emprego, por
camisetas para times de futebol locais, até um galeto com cerveja.
Via de regra, esses dispositivos respondem às necessidades que
deveriam ser sanadas com políticas públicas.
Perceba
que aqui está o combustível da pequena
política. A falta de ação
do Estado passa ser um projeto frutífero para a pequena política. A
ausência de ações estruturadas, abre brechas para as necessidades
da população e por consequência, para as janelas de oportunidade
do clientelismo. Pensemos no caso das enchentes do bairro Americana
ou Maria Regina. Vale mais (aqui ciente que não se trata de uma ação
simples, mas que não se faz sem comprometimento político e projeto
de transformação) enchentes constantes, gerando uma centena de
necessidades (telhas, ajuda, roupas, uniformes de futebol ...), ou
resolver de fato o problema das pessoas. Em outras palavras, o que dá
mais poder: a dominação material e de consciência por parte dos
representantes da burguesia ou um projeto de emancipação para os trabalhadores? A
dominação gera manutenção de poder.
Do
outro lado, a população votante, aqui vítima de um processo
histórico de dominação vê nos dispositivos de clientelismo -
mesmo que as vezes com certa desconfiança- , alternativas viáveis
de sanar suas demandas: “Aquele vereador é bom, ao menos ele se
importa com nós, veio aqui no dia da enchente me entregar lona”.
Note bem: o que claramente pode ser considerado como corrupção, na
verdade acaba virando um modo de sobrevivência, por parte da
população que pouca influência política, mas com uma quantidade
enorme de demandas.
Na
outra ponta, encontra-se o empresário ou pessoa sem cargo político,
com certa influência política, que não precisa ser alguém com
grande capital acumulado, mas que possua certa capacidade de
relacionamento com o “político” com cargo eletivo ou de
confiança, com poder de ação. Nesse caso, a relação não se
estabelece da mesma forma do que com a população
em geral. Ou achava que os dispositivos de clientelismo saíam do
salário do vereador? Na verdade, o clientelismo é mantido com os
recursos que podem ser recolhidos com mecanismos de influência, que
podem ser ou propina direta, ou mesmo materiais que são repassados
no clientelismo. A lona que vai para tapar o buraco da casa na
enchente, pode ter sido doada pelo dono da casa de ferragens que quer
algum beneficiamento político, e entregue pelo “político”, que
reproduz a pequena política.
Os
beneficiamentos políticos, almejados pelo empresário ou pessoa sem
cargo político, com certa influência política, podem ser os mais
diversos. Desde influência política no cenário local, até mesmo
recursos próprios de beneficiamento legal (colocar asfalto em frente
a uma loja de ferragens...).
O
“político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de
ação, que não respeitar a lógica da pequena
política dificilmente terá
êxito, justamente por se tratar de um ciclo fechado em que todas as
partes são dependentes entre si. Obviamente, não tratamos de
postulados universalizantes, mas de demarcações tradicionais de
atores que frequentemente são vistos. Nem toda a população
votante, há de se submeter ao ciclo da pequena-política, mas esse
se faz tão presente, que dita de forma geral as regras do
funcionamento político, e em especial, no nosso exemplo de Alvorada.
Pois é muito fácil identificar aqui, monopólios de poder,
indisponibilidade de renovação, e uma atuação política por parte
da população geral muito dependente de clientelismos de ocasião.
Também por isso, grande parte das propostas de suposta renovação
política apresentadas, não passam de modernizações do velho ciclo
da pequena política. Para mudar essa realidade, as eleições
não resolvem. Pelo trabalho de base e ação política que motive a
organização popular, desde os locais de trabalho, de estudo e de
moradia. Estímulo a independência e respeito à classe
trabalhadora, em suas organizações. Ampliação da política, para
além das trocas de favores e das mentiras, para a criação de um
novo poder, que repudie a pequena
política.