quarta-feira, 8 de julho de 2020

O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS


Rafael Freitas - Educador popular, coordenador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata




Rafael Melo - Enfermeiro e Sanitarista











                      O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS

             O que chamamos aqui de pequena política encontra as mais diversas definições, explicações e abordagens. Preferimos pensar a pequena política a partir da nossa realidade e do marxista italiano Antonio Gramsci, que enfrentava o fascismo primeiro, enquanto nós vivemos o avanço fascista no tempo presente. Chamamos de pequena política a forma como a política é conduzida em Alvorada, ou seja, ações que servem para manter as relações tradicionais entre governos e a classe trabalhadora, que nem sonham em colocar no horizonte a superação das classes, e o fim de um mundo com governantes e governados. Parece uma ingenuidade ter como objetivo um mundo novo, com novos valores e relações sociais. Mas a democracia representativa foi também algo impensável durante o Brasil escravista, quando os abolicionistas radicais eram “xingados” de comunistas. Independente do que o caro leitor ou a cara leitora pense lendo essas linhas, as relações sociais no Brasil irão mudar, como sempre se alteraram. E cada prática em sociedade participa dessa variação.


             Muitas pessoas têm chamado a pequena política de corrupção, de velha política, entre outros apelidos. Pra nós, essas palavras não têm dado conta da magnitude dos problemas que passamos. A abordagem a partir da “corrupção”, com muita frequência, se vale tão somente de aspecto como uma moralidade barata, quando não seletiva. Também pessoaliza esquemas de corrupção em supostos “políticos do mal”, excluindo da análise um sistema maior de beneficiamento. As mais fervorosas manifestações contra a corrupção, nos pareceram (talvez intencionalmente ou socialmente produzido) direcionadas somente aos “corruptos” (corrompidos) sem apontar os corruptores, no caso do congresso e do executivo nacional, grandes empresários que muito mais têm a lucrar que os próprios políticos “corruptos”.


              A leitura que trazemos aqui, é que esquemas de beneficiamento não dependem - somente - de “políticos corruptos”, mas estruturam todo um sistema, uma espécie de rito político brasileiro, que mais tem a ver com as regras do jogo, que com boa ou má intenção. As regras desse jogo não estão descoladas com a própria sociedade que as criou.

            O rito político brasileiro está estruturado em certa sociedade constituída historicamente. O Brasil é um país capitalista de economia dependente, com um Estado historicamente clientelista com o grande Capital e perverso com a classe trabalhadora. Chamamos atenção, para não pensarmos o Estado como algo inerte ao Capital, pelo contrário. Desta forma o que muito chama de “corrupção”, na verdade é a forma mais clássica de funcionamento desse modo de ser do Estado burguês.

         Preferimos, portanto, falar de um ciclo de pequena política, que se sustenta e não está descolado de nossa (des)organização social. Não basta tratarmos aqui de políticos bons ou malvados, mas de um sistema de dominação que favorece os mais ricos e penaliza de forma cruel os mais pobres.

          Para tornarmos o debate mais palpável, usaremos como exemplo a prática política de nossa cidade: Alvorada. Alvorada é uma cidade pequena o suficiente para expor com facilidade as práticas de pequena política e grande o suficiente para que essas práticas sejam substanciais à manutenção dos sistemas de poder. Mas afinal, o que é esse tal de ciclo da pequena política, em Alvorada?

          O ciclo da pequena política não tem um início. Se tem, nessa altura do campeonato já é difícil de saber onde inicia e onde termina. Mas tem um ponto forte, que estamos chamando aqui de “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação. Neste caso trata-se de ator com maior capacidade de atuação na arena política, diante dos outros atores aqui citados. Ele que faz a roda da pequena-política rodar.

           Acompanhando a imagem a baixo, iniciemos olhando para a classe trabalhadora em geral, que aqui chamaremos de população votante. Esta, analisa a situação de Alvorada, na posição de eleitor. Alguém que vota, esperando que a vida melhore, esperando retorno do Estado, escola, saúde, asfalto. Cria-se uma certa necessidade, uma demanda não assistida.

             O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, vê nessa demanda um nicho de ligação clientelista. Uma vez remediada, mesmo que deforma limitada, essa determinada necessidade, fica aberta a possibilidade de uma retribuição (voto, campanha...). O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, utiliza de dispositivos de clientelismo, visando ser alguém presente na vida do sujeito da população votante, esperando em troca a recompensa política. Os dispositivos de clientelismo podem ser os mais diversos que vão desde troca direta de comida por voto direto, passando por uma vaga de emprego, por camisetas para times de futebol locais, até um galeto com cerveja. Via de regra, esses dispositivos respondem às necessidades que deveriam ser sanadas com políticas públicas.


            Perceba que aqui está o combustível da pequena política. A falta de ação do Estado passa ser um projeto frutífero para a pequena política. A ausência de ações estruturadas, abre brechas para as necessidades da população e por consequência, para as janelas de oportunidade do clientelismo. Pensemos no caso das enchentes do bairro Americana ou Maria Regina. Vale mais (aqui ciente que não se trata de uma ação simples, mas que não se faz sem comprometimento político e projeto de transformação) enchentes constantes, gerando uma centena de necessidades (telhas, ajuda, roupas, uniformes de futebol ...), ou resolver de fato o problema das pessoas. Em outras palavras, o que dá mais poder: a dominação material e de consciência por parte dos representantes da burguesia ou um projeto de emancipação para os trabalhadores? A dominação gera manutenção de poder.


           Do outro lado, a população votante, aqui vítima de um processo histórico de dominação vê nos dispositivos de clientelismo - mesmo que as vezes com certa desconfiança- , alternativas viáveis de sanar suas demandas: “Aquele vereador é bom, ao menos ele se importa com nós, veio aqui no dia da enchente me entregar lona”. Note bem: o que claramente pode ser considerado como corrupção, na verdade acaba virando um modo de sobrevivência, por parte da população que pouca influência política, mas com uma quantidade enorme de demandas.

             Na outra ponta, encontra-se o empresário ou pessoa sem cargo político, com certa influência política, que não precisa ser alguém com grande capital acumulado, mas que possua certa capacidade de relacionamento com o “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação. Nesse caso, a relação não se estabelece da mesma forma do que com a população em geral. Ou achava que os dispositivos de clientelismo saíam do salário do vereador? Na verdade, o clientelismo é mantido com os recursos que podem ser recolhidos com mecanismos de influência, que podem ser ou propina direta, ou mesmo materiais que são repassados no clientelismo. A lona que vai para tapar o buraco da casa na enchente, pode ter sido doada pelo dono da casa de ferragens que quer algum beneficiamento político, e entregue pelo “político”, que reproduz a pequena política.

 
               Os beneficiamentos políticos, almejados pelo empresário ou pessoa sem cargo político, com certa influência política, podem ser os mais diversos. Desde influência política no cenário local, até mesmo recursos próprios de beneficiamento legal (colocar asfalto em frente a uma loja de ferragens...).

               O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, que não respeitar a lógica da pequena política dificilmente terá êxito, justamente por se tratar de um ciclo fechado em que todas as partes são dependentes entre si. Obviamente, não tratamos de postulados universalizantes, mas de demarcações tradicionais de atores que frequentemente são vistos. Nem toda a população votante, há de se submeter ao ciclo da pequena-política, mas esse se faz tão presente, que dita de forma geral as regras do funcionamento político, e em especial, no nosso exemplo de Alvorada. Pois é muito fácil identificar aqui, monopólios de poder, indisponibilidade de renovação, e uma atuação política por parte da população geral muito dependente de clientelismos de ocasião. Também por isso, grande parte das propostas de suposta renovação política apresentadas, não passam de modernizações do velho ciclo da pequena política. Para mudar essa realidade, as eleições não resolvem. Pelo trabalho de base e ação política que motive a organização popular, desde os locais de trabalho, de estudo e de moradia. Estímulo a independência e respeito à classe trabalhadora, em suas organizações. Ampliação da política, para além das trocas de favores e das mentiras, para a criação de um novo poder, que repudie a pequena política




 

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