domingo, 29 de agosto de 2021

Eu vejo o futuro repetir o passado

   



Márcia Antunes
Artista visual, arte terapeuta, educadora e artesã, bordadeira, ex-punk, reikiana, atéia, motoqueira, viciada em livros, chá e filme francês



Nos últimos dias assistimos quase que completamente incrédulos os talibãs

consolidando sua volta ao poder no Afeganistão. Nesta versão “atualizada” de tomada de

poder opressivo, soubemos mais rapidamente o que estava acontecendo graças à

tecnologia e as redes sociais. E nossa atuação efetiva nesse absurdo todo, parou por aí

mesmo. Foram inúmeras pessoas que tentaram sair de Cabul a tempo de evitar o

sofrimento iminente. Especialmente as mulheres, que já sentiram na carne (literalmente) o

peso da crueldade deste regime fundamentalista.

Apavoradas, temem sair às ruas. Justamente esta geração mais nova, que devia ter

recebido assistência que poderia ter evitado a entrega do país aos talibãs.

País esse que parece ter parado no tempo. Um país tribal, quase um “quebra-cabeças”

com tantas etnias diferentes; com decisões sociais feitas por anciãos e clãs. Escambo,

gente morando em tendas ao invés de casas; 80% não tem energia elétrica. E com avanços

muito tímidos na valorização da mulher. Muitas delas ainda usam burcas.

Item da tradição pachtum (uma etnia afegã), a burca é algo já internalizado pela cultura

misógina daquele lugar. A religião, usada como pretexto de toda opressão feita às

mulheres, conseguiu cumprir bem seu papel: muitas se sentem envergonhadas se não

cobrem seu corpo, ou ao menos, seu rosto. É a “tradição”.

Desconstruir toda esta visão que objetifica o corpo da mulher tem sido a luta árdua e

exaustiva de muitas de nós. Em nossas rotinas, temos buscado acolher para poder

modificar uma leitura rasa de tudo o que possa significar “ser mulher”.

O talibã é um extremo. Mas são vários os tons desta cartela de cores dolorosa que é o

patriarcado. Existem formas não tão óbvias de se “coisificar” a mulher. Frases

romantizadas, atitudes assistencialistas e paternais; protecionismo disfarçado de docilidade,

etc. Um número gigante de ações tão banalizadas, que quase não percebemos.

O ano é 2021; estamos em uma quarentena mortal; disputa de orçamentos de vacina

enquanto milhares morrem; a economia castiga sem pena (e mata). E ainda vemos pelas

telas dos celulares: chás de revelação de sexo, romatização de relações amorosas,

banalização da violência, descaso com políticas de atendimento básico às mulheres e uma

volta “medieval” de valores sociais.

Cabul está em sítio. Físico, psicológico e social. Seguimos nos informando para que

possamos fazer algo legítimo e concreto contra o absurdo deste regime autoritário.

Mas que tenhamos os olhos atentos ao nosso entorno mais local, para que nossa

percepção não fique dormente. E que “Gilead” esteja apenas onde sempre esteve: no

repertório ficcional.

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