Nos últimos dias assistimos quase que completamente incrédulos os talibãs
consolidando sua volta ao poder no Afeganistão. Nesta versão “atualizada” de tomada de
poder opressivo, soubemos mais rapidamente o que estava acontecendo graças à
tecnologia e as redes sociais. E nossa atuação efetiva nesse absurdo todo, parou por aí
mesmo. Foram inúmeras pessoas que tentaram sair de Cabul a tempo de evitar o
sofrimento iminente. Especialmente as mulheres, que já sentiram na carne (literalmente) o
peso da crueldade deste regime fundamentalista.
Apavoradas, temem sair às ruas. Justamente esta geração mais nova, que devia ter
recebido assistência que poderia ter evitado a entrega do país aos talibãs.
País esse que parece ter parado no tempo. Um país tribal, quase um “quebra-cabeças”
com tantas etnias diferentes; com decisões sociais feitas por anciãos e clãs. Escambo,
gente morando em tendas ao invés de casas; 80% não tem energia elétrica. E com avanços
muito tímidos na valorização da mulher. Muitas delas ainda usam burcas.
Item da tradição pachtum (uma etnia afegã), a burca é algo já internalizado pela cultura
misógina daquele lugar. A religião, usada como pretexto de toda opressão feita às
mulheres, conseguiu cumprir bem seu papel: muitas se sentem envergonhadas se não
cobrem seu corpo, ou ao menos, seu rosto. É a “tradição”.
Desconstruir toda esta visão que objetifica o corpo da mulher tem sido a luta árdua e
exaustiva de muitas de nós. Em nossas rotinas, temos buscado acolher para poder
modificar uma leitura rasa de tudo o que possa significar “ser mulher”.
O talibã é um extremo. Mas são vários os tons desta cartela de cores dolorosa que é o
patriarcado. Existem formas não tão óbvias de se “coisificar” a mulher. Frases
romantizadas, atitudes assistencialistas e paternais; protecionismo disfarçado de docilidade,
etc. Um número gigante de ações tão banalizadas, que quase não percebemos.
O ano é 2021; estamos em uma quarentena mortal; disputa de orçamentos de vacina
enquanto milhares morrem; a economia castiga sem pena (e mata). E ainda vemos pelas
telas dos celulares: chás de revelação de sexo, romatização de relações amorosas,
banalização da violência, descaso com políticas de atendimento básico às mulheres e uma
volta “medieval” de valores sociais.
Cabul está em sítio. Físico, psicológico e social. Seguimos nos informando para que
possamos fazer algo legítimo e concreto contra o absurdo deste regime autoritário.
Mas que tenhamos os olhos atentos ao nosso entorno mais local, para que nossa
percepção não fique dormente. E que “Gilead” esteja apenas onde sempre esteve: no
repertório ficcional.
Bela reflexão se não fosse triste, mas o que fazer.
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