Ensino, planejamento e resistência cultural: reflexões acerca da aplicação da Lei 10.639/2003 nas escolas.
Prof. Sérgio Pires - Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Durante as atividades da Semana da Consciência Negra do ano passado, realizadas na escola em que trabalho, um fato chamou minha atenção. Uma destas atividades, era a confecção de cartazes alusivos à questão do negro no Brasil, e foram feitos pelos alunos do 6.º ano do ensino fundamental.
Dentre tantos cartazes que ornavam os corredores da escola, em sua maioria retratando a escravidão, um deles tinha como título: “A Revolta da Chibata”, o que me fez olhar com mais atenção. Para minha surpresa, no centro do cartaz, estava uma figura de um almirante, branco, com uma farta barba grisalha, e logo abaixo da figura estava escrito: “O Almirante Negro”.
Fiquei perplexo por alguns instantes, e não pude deixar de pensar como era absurdo um colega professor aceitar esse cartaz com um erro tão aberrante, contudo, outras questões vieram à minha mente, como: o aluno em questão teve acesso a informação adequada referente ao assunto? Será que durante o transcorrer do trimestre, dentro dos conteúdos da disciplina de História, foi trabalhado com ele e seus colegas conteúdos referentes a esse episódio da História do Brasil? Ou ainda, observando a atuação dos colegas professores e, inclusive e principalmente, da supervisão escolar, como estes colegas buscam, e se buscam, meios de se atualizarem, para que dessa maneira consigam desenvolver suas aulas, de modo a contemplar essas questões? Qual o nível de comprometimento dos colegas referentes a aplicação da Lei 10.639/2003?
As questões referentes a temática negra nas escolas, ainda que contempladas pela Lei 10.639/2003, constituem um grande desafio, tanto para os professores, e nisto incluímos os supervisores e orientadores, quanto para a própria comunidade escolar.
O desafio principal das escolas é o de desconstruir essa característica de se utilizar das datas históricas ou pré-estabelecidas, como o dia do Índio ou o dia da Consciência Negra, para construir o planejamento pedagógico, que coloca em “caixas” as questões referentes, como no exemplo, das populações indígenas e negras, fazendo com que se transforme em questões temáticas e pontuais, datadas, questões que estão inseridas no dia a dia, no cotidiano, da própria comunidade em que a escola está inserida.
E nesse sentido, as palavras de Milton Santos deixam essa questão muito clara, ou seja, tratar da questão negra nas escolas, não pode ficar confinada a apenas uma semana ou um mês, mas deve sim estar incluída no projeto pedagógico das escolas em seu todo, na sua totalidade.
Incluir o estudo da história da África e dos africanos e da luta dos negros no Brasil, no planejamento pedagógico da escola, precisa ser tratado com toda a seriedade, pois não se trata de um acréscimo de conteúdo, uma vez que as abordagens em sala de aula devem, principalmente, promover a separação da população negra com a escravidão, quebrando dessa maneira, o círculo vicioso do que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chamou de “história única”, ou seja, é necessário ensinar aos nossos alunos a história, tanto do continente africano, com toda a sua diversidade étnica, quanto das populações negras no Brasil, suas lutas contra a escravidão que lhes foi imposta, assim como das suas lutas em todo o período pós-abolição, até os dias atuais, quebrando dessa maneira esse paradigma ultrapassado de se ensinar uma história branca, europeia.
Observo que o impacto dessa mudança de paradigmas, será de grande importância para toda a comunidade escolar, mas evidentemente, o impacto maior será sobre os alunos que são afrodescendentes, uma vez que no modelo anterior, a abordagem utilizada fazia uma ligação entre as populações negras e a escravidão, o que com a aplicação da lei deverá mudar, uma vez que, obviamente se falará da escravidão, por ser talvez a grande chaga da humanidade, mas dando um enfoque maior a história destas populações antes dessa período, falando sobre os grande reinos que existiam no período anterior a chegada dos europeus.
O resultado principal será, acredito, o resgate e o aumento da autoestima dos alunos afrodescendentes, que poderão conhecer as origens dos povos negros que colonizaram o país, juntamente com outras etnias, resultando na grande diversidade étnica do Brasil.
Em conversas e debates com colegas professores, pude observar uma certa resistência com relação à lei, e o foco de resistência, talvez esse não seja o termo mais adequado, contrário a aplicação da Lei 10.639, pode ser dividido em duas questões: a primeira delas se refere a qualificação.
Os professores alegam dificuldades, tanto de tempo e de recursos, para buscarem qualificação para ministrarem as aulas sobre história do continente africano, muitos possuem uma carga horário de 40 e de até 60 horas semanais, o que inviabilizaria suas participações em cursos ou seminários.
O segundo, e o que considero mais complexo, reside no que Oracy Nogueira nos disse, se referindo a uma das características do sofisticado racismo brasileiro, que se refere à definição do ser “mais” ou “menos” negro, partindo da análise do fenótipo dos alunos.
Essa, sem dúvida é a questão mais complexas, uma vez que trata diretamente da afirmação ou autoafirmação da própria negritude dos alunos, de forma especial nas séries iniciais, onde as concepções de si próprio e do mundo estão em plena construção.
Logo, além de um planejamento extremamente cuidadoso, que possa dar conta de todos as demandas curriculares, e entendamos isso já com a lei 10.639/2003 incluída, há de se promover uma mudança interna, uma transformação do próprio professor, não somente enquanto educador, mas sim enquanto ser humano, pois não é admissível que se escute nos corredores escolares frases como “eu não tenho alunos negros, só moreninhos” ou “ele é mais escurinho, mas negro, negro, não é”, frases que eu já tive o desprazer de ouvir.
Não podemos esquecer da participação dos pais nesse processo, pois muito se tem falado de professores e alunos, e esquecendo da outra ponta do triângulo. Os desafios serão iguais ou maiores, pois o professor não tem como saber como que esse assunto é tratado na casa dos seus alunos, independentemente da origem da família, ou seja, há uma série de outros fatores que concorrerão na aplicação da lei 10.639/2003, como o próprio preconceito racial e a religião.
Tendo o entendimento de que o universo da aprendizagem perpassa a sala de aula e que as famílias ou grupos familiares tem um papel fundamental no apoio da construção dessas aprendizagens escolares, será necessário pensar também em promover para os pais ou responsáveis atividades nas escolas, com o intuito de desmistificar os novos conteúdos a serem abordados, sobretudo com as famílias que tem confissão religiosa.
Como podemos perceber, ainda há todo um trabalho que precisa ser feito, tanto nas escolas, quanto nos professores e nas famílias dos alunos, ou seja, esta deve ser uma construção do coletivo, do todo, que para isso se exige o envolvimento de toda a comunidade escolar, começando pelas direções e supervisões pedagógicas, que precisam abraçar essa ideia, passando pelo corpo docente e discente, pais e funcionários, para que dessa maneira possamos alcançar, ainda citando Milton Santos, a Consciência Nacional, e que a escola e a nossa sociedade possam formar Cidadãos Integrais.
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