Cristine Severo é Graduada e Mestre em Letras pela UFRGS e Graduanda em Ciências Sociais pela UFRGS e Professora da Rede Pública em Novo Hamburgo RS
Os
homens também sofrem
Toda
história do conhecimento ocidental é escrita por homens, para
homens, sobre homens. Sei que toda generalização é uma armadilha,
mas esta é uma generalização validada pelo cânone. Pense comigo,
desde Homero, Sócrates, Platão e Aristóteles (e até antes),
passando por Kant, Rousseau, até alguns mais modernos, como Hegel,
Marx, Nietzsche, Sartre, os dramas dos homens foram debatidos como se
fossem dramas humanos. Acontece que esta é uma perspectiva
masculina sobre a existência, ou seja, não necessariamente os
dramas dos homens são os mesmos dramas das mulheres. Isso quer dizer
que estes autores falaram sobre homens, seres do sexo masculino.
Ocorre
que quando uma mulher tentou trabalhar as questões das mulheres,
sejam elas existenciais, filosóficas ou sociais, esta não recebia o
mesmo status de universalidade que os trabalhos dos homens
automaticamente recebiam (e recebem). Eram vistas apenas como “a
perspectiva feminina”. Além disso, quando mulheres se esforçavam
por demonstrar suas perspectivas de mundo, o cânone e a história
logo trataram de apagá-las, silenciá-las ou tratá-las como obras
menores diante do tão grandioso trabalho dos homens. É assim que
hoje pouquíssimas pessoas sabem quem foram as grandes mulheres da
história do conhecimento ocidental.
É
assim que pouquíssimas pessoas sabem quem foi Safo, mas todos sabem
quem foi Sófocles e Homero; ou Aspásia de Mileto, Hipárquia de
Maroneia, mas todos sabem que foi Platão; ou Hildegarda de Bingen,
Christine
de Pisan,
Olimpia de Gouges,
Mary
Wollstonecraft, sem falar das brasileiras, Nisia Floresta e Pagu.
Estes são apenas alguns poucos nomes perto da quantidade de obras de
mulheres pensadoras que não chegam até nós pelo processo histórico
do apagamento das vozes dessas mulheres. Além disso, o fato de o
cânone considerar o texto masculino como universal e o texto
feminino como uma perspectiva também contribuiu para esse
esquecimento do tempo.
Volto,
assim, à minha afirmação inicial: toda história do conhecimento
ocidental é escrita por homens, para homens, sobre homens. Pois é
esta que sobrevive, que vira cânone, que é lida e estudada nas
escolas. Pensando nisso, sinto uma certa reviravolta no estômago
toda vez que, em uma conversa sobre a situação da mulher na
sociedade, algum homem sempre tem a necessidade quase fisiológica de
intervir e acrescentar: “ah, mas os homens também sofrem”. Sim,
nós sabemos que os homens também sofrem, toda história do
conhecimento ocidental é sobre vocês, fala sobre o sofrimento de
vocês, sobre as questões existenciais de vocês. Todos os dramas
humanos relatados na filosofia e na literatura foram sobre vocês.
Sendo assim, não é o momento de atrair para si próprios uma parte
da atenção quando as mulheres ocupam os restos dos espaços que
sobram na sociedade. É a repetição do que a história fez com os
discursos femininos: silenciou-os.
Quando
uma mulher fala sobre sua condição de mulher na sociedade atual,
ela não espera que toda vez seja contraposta uma posição do
universo masculino que lembra que os homens também são maltratados
na sociedade, porque isso diminui a validade do discurso dessa mulher
enquanto um lugar de fala tão importante quanto o ocupado por toda a
história do conhecimento ocidental. Toda vez que alguém interrompe
a fala de uma mulher para dizer que os homens também sofrem, a voz
dessa mulher é, novamente, apagada e silenciada. Seu discurso é
desvalorizado, e reduzido a uma simples comparação com o universo
do homem, uma vez que este está tão habituado a ser o parâmetro de
medição para os demais. Isso não quer dizer que a fala dessa
mulher seja verdade universal (como a fala dos homens tampouco o é),
logo é possível concordar, discordar e debater com essa fala, mas
sem acionar a posição sofredora do homem na sociedade, querendo
desviar o foco central da conversa, que são as mulheres. Isso também
não quer dizer não podemos falar do sofrimento dos homens. Nós
podemos. Apenas não é o momento para isso. Não vamos repetir o que
é feito com mulheres há séculos, não vamos silenciar as mulheres
em suas falas. Vamos argumentar sem menosprezar seu discurso com o
jargão de que homem também sofre.
As
mulheres ainda estão criando as suas próprias referências teóricas
e filosóficas. Hoje o feminismo e os estudos de gênero estão
dentro das universidades e tomaram um alcance amplo, grande parte
devido a tecnologias como a internet. Não podemos negar que as
mulheres já estão sendo ouvidas em suas demandas e que ocuparam uma
pequena brecha na totalidade da história do conhecimento ocidental.
Mas isso não passa de uma fresta que foi aberta. Este é apenas o
início de um longo processo de resgate das vozes das mulheres e da
valorização do seu lugar de fala. Um processo que deve gerar bons
frutos para as próximas gerações.
P.s.:
Eu nem toquei na questão da mulher negra, que sofre duplo processo
de silenciamento, mas acredito que as próprias mulheres negras têm
mais legitimidade que eu para falar sobre o assunto.