sábado, 3 de setembro de 2016

Precisamos falar sobre machismo na linguagem


Precisamos falar sobre machismo na linguagem

Cristine Severo é Graduada e Mestre  em Letras pela UFRGS, Graduanda de Ciências Sociais pela UFRGS e Professora na Rede Pública de Novo Hamburgo.



Quando eu estava na escola e tinha uns 11 anos, uma professora falou para a turma o seguinte:










"Nós usamos a palavra homem para nos referirmos tanto ao homem quanto à mulher. Homem, nesse caso, tem sentido de ser humano."

Pequeno sentimento de revolta interna. Mas como eu era criança, não sabia como expressar essa revolta e não falei nada para a professora.

Hoje esse pequeno sentimento de revolta se transformou numa sensação de exclusão cada vez que alguém usa a palavra homem para se referir a ser humano. Por que não usar apenas ser humano?
Usar a palavra homem nesse sentido é conferir validade aquilo que podemos chamar de machismo linguístico. Nossa língua está cheia das marcas do machismo. Nesse caso, a palavra homem representa a totalidade, enquanto a palavra mulher representa a particularidade, singularidade. Quando usamos a palavra mulher ninguém imagina que estamos falando de homens e mulheres. Como Simone de Beavouir dizia, o homem é o essencial, o Um, a mulher é o inessencial, o outro:




“A relação dos dois sexos não é a das duas eletricidades, de dois polos. O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos 'os homens' para designar os seres humanos (…). A mulher aparece como o negativo (…). A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele (…). Ela não é senão o que o homem decide que seja (…). A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.” (O segundo sexo).


Utilizar a palavra homem nesse contexto é validar essa posição essencial ao ser do sexo masculino, que é capaz de englobar em si próprio tanto os homens quanto as mulheres. A mulher não é capaz disso. A mulher é sempre só mulher. O homem é o todo, a mulher é a parte.

Lendo os textos de sociologia para a graduação, me deparo com essa palavra muito mais frequentemente do que eu gostaria. Essa palavra está em todo lugar. E sempre esteve. “O homem é lobo do homem”, afirmava Hobbes. “L'homme est né libre, et partout il est dans les fers”1, famosa frase de Rousseau2.

 Ninguém imagina uma mulher quando lê essas frases. Ler as traduções dos textos de Marx e Engels tem se tornado uma tarefa trabalhosa, pois em momento nenhum me sinto contemplada por sua teoria quando eles falam do “homem”. Quando imaginamos aquele ser material e histórico que Marx nos fala ninguém imagina uma mulher. E muitas delas trabalharam nas fábricas, foram expulsas do campo, participaram das greves, etc. Mas talvez pior do que ler nos textos é ouvir professores e professoras usando a palavra em sala de aula indiscriminadamente, irrefletidamente, acriticamente.



Em 1791, Olympe de Gouges escreveu “A declaração dos direitos da mulher e da cidadã”, texto praticamente esquecido até o final do século XX, quando voltou a ser publicado. O texto era uma clara confrontação à famosa “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, redigida durante a Revolução Francesa. Olympe tentava atribuir às mulheres o mesmo status de cidadã que os homens desde sempre tiveram. Mas Olympe não foi ouvida. E os direitos continuaram sendo apenas dos homens.

Assim, como afirmou Simone, a história contada é a história dos homens, sob o ponto de vista dos homens, para os homens. Quando eu leio “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” não sinto que as mulheres estejam inclusas nesses direitos, porque para mim o homem não é a totalidade. O homem é o ser do sexo masculino.

Portanto, escritores, escritoras, romancistas, ensaístas, e todas as pessoas que ainda usam essa palavra na sua fala ou nos seus escritos, que tal passarmos a usar mais expressões como ser humano, humanidade, as pessoas, a sociedade, indivíduo, ser, ao invés de, novamente, colocarmos os homens como representação da totalidade de nossa espécie. Por que eles não são!

1O homem nasceu livre e em toda parte é posto a ferros. (tradução da L&PM Pocket)
2Tomo as frases como exemplo, não querendo fazer um julgamento anacrônico de Hobbes e Rousseau.

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