sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Os homens também sofrem



Cristine Severo é Graduada e Mestre em Letras pela UFRGS e Graduanda em Ciências Sociais pela UFRGS e Professora da Rede Pública em Novo Hamburgo RS






Os homens também sofrem
Toda história do conhecimento ocidental é escrita por homens, para homens, sobre homens. Sei que toda generalização é uma armadilha, mas esta é uma generalização validada pelo cânone. Pense comigo, desde Homero, Sócrates, Platão e Aristóteles (e até antes), passando por Kant, Rousseau, até alguns mais modernos, como Hegel, Marx, Nietzsche, Sartre, os dramas dos homens foram debatidos como se fossem dramas humanos. Acontece que esta é uma perspectiva masculina sobre a existência, ou seja, não necessariamente os dramas dos homens são os mesmos dramas das mulheres. Isso quer dizer que estes autores falaram sobre homens, seres do sexo masculino.
Ocorre que quando uma mulher tentou trabalhar as questões das mulheres, sejam elas existenciais, filosóficas ou sociais, esta não recebia o mesmo status de universalidade que os trabalhos dos homens automaticamente recebiam (e recebem). Eram vistas apenas como “a perspectiva feminina”. Além disso, quando mulheres se esforçavam por demonstrar suas perspectivas de mundo, o cânone e a história logo trataram de apagá-las, silenciá-las ou tratá-las como obras menores diante do tão grandioso trabalho dos homens. É assim que hoje pouquíssimas pessoas sabem quem foram as grandes mulheres da história do conhecimento ocidental.
É assim que pouquíssimas pessoas sabem quem foi Safo, mas todos sabem quem foi Sófocles e Homero; ou Aspásia de Mileto, Hipárquia de Maroneia, mas todos sabem que foi Platão; ou Hildegarda de Bingen, Christine de Pisan, Olimpia de Gouges, Mary Wollstonecraft, sem falar das brasileiras, Nisia Floresta e Pagu. Estes são apenas alguns poucos nomes perto da quantidade de obras de mulheres pensadoras que não chegam até nós pelo processo histórico do apagamento das vozes dessas mulheres. Além disso, o fato de o cânone considerar o texto masculino como universal e o texto feminino como uma perspectiva também contribuiu para esse esquecimento do tempo.
Volto, assim, à minha afirmação inicial: toda história do conhecimento ocidental é escrita por homens, para homens, sobre homens. Pois é esta que sobrevive, que vira cânone, que é lida e estudada nas escolas. Pensando nisso, sinto uma certa reviravolta no estômago toda vez que, em uma conversa sobre a situação da mulher na sociedade, algum homem sempre tem a necessidade quase fisiológica de intervir e acrescentar: “ah, mas os homens também sofrem”. Sim, nós sabemos que os homens também sofrem, toda história do conhecimento ocidental é sobre vocês, fala sobre o sofrimento de vocês, sobre as questões existenciais de vocês. Todos os dramas humanos relatados na filosofia e na literatura foram sobre vocês. Sendo assim, não é o momento de atrair para si próprios uma parte da atenção quando as mulheres ocupam os restos dos espaços que sobram na sociedade. É a repetição do que a história fez com os discursos femininos: silenciou-os.
Quando uma mulher fala sobre sua condição de mulher na sociedade atual, ela não espera que toda vez seja contraposta uma posição do universo masculino que lembra que os homens também são maltratados na sociedade, porque isso diminui a validade do discurso dessa mulher enquanto um lugar de fala tão importante quanto o ocupado por toda a história do conhecimento ocidental. Toda vez que alguém interrompe a fala de uma mulher para dizer que os homens também sofrem, a voz dessa mulher é, novamente, apagada e silenciada. Seu discurso é desvalorizado, e reduzido a uma simples comparação com o universo do homem, uma vez que este está tão habituado a ser o parâmetro de medição para os demais. Isso não quer dizer que a fala dessa mulher seja verdade universal (como a fala dos homens tampouco o é), logo é possível concordar, discordar e debater com essa fala, mas sem acionar a posição sofredora do homem na sociedade, querendo desviar o foco central da conversa, que são as mulheres. Isso também não quer dizer não podemos falar do sofrimento dos homens. Nós podemos. Apenas não é o momento para isso. Não vamos repetir o que é feito com mulheres há séculos, não vamos silenciar as mulheres em suas falas. Vamos argumentar sem menosprezar seu discurso com o jargão de que homem também sofre.
As mulheres ainda estão criando as suas próprias referências teóricas e filosóficas. Hoje o feminismo e os estudos de gênero estão dentro das universidades e tomaram um alcance amplo, grande parte devido a tecnologias como a internet. Não podemos negar que as mulheres já estão sendo ouvidas em suas demandas e que ocuparam uma pequena brecha na totalidade da história do conhecimento ocidental. Mas isso não passa de uma fresta que foi aberta. Este é apenas o início de um longo processo de resgate das vozes das mulheres e da valorização do seu lugar de fala. Um processo que deve gerar bons frutos para as próximas gerações.


P.s.: Eu nem toquei na questão da mulher negra, que sofre duplo processo de silenciamento, mas acredito que as próprias mulheres negras têm mais legitimidade que eu para falar sobre o assunto.

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