Cristine Severo é Mestra e Graduada em Letras pela UFRGS e Graduanda em Ciências Sociais pela UFRGS e Professora pela Rede Pública em Novo Hamburgo - RS
Afinal,
o que querem os estudos de gênero?
Nos
últimos tempos, tem sido frequente uma enorme ojeriza em relação
aos estudos de gênero, ao movimento feminista ou a qualquer pauta
relacionada aos temas LGBTQ. Assisti a um vídeo na internet que
mostrava crianças se posicionando contra a tal “ideologia de
gênero” (eu realmente não sei o que é isso!), falando em Deus,
dizendo que não nasceram erradas e que Deus não errou. O que vi no
vídeo foi uma ignorância gigantesca sobre o que são os estudos de
gênero. A internet e os brasileiros estão tomados pelo vírus da
ignorância, cujos sintomas são: falar sobre qualquer assunto sem
ler e sem pesquisar, não aceitar o diálogo, citar Deus quando não
deveriam, não querer aprender sobre o assunto, entre outros ainda
não descobertos (é possível que os sintomas se manifestem de forma
diferente em cada pessoa dependendo do nível de intolerância de
cada um).
Felizmente
esse vírus tem cura: se chama pesquisa e leitura. Se, mesmo depois
de ler e pesquisar sobre os assuntos, as pessoas ainda forem contra,
pelo menos o são com propriedade, e não baseados em Deus ou algo do
tipo. Não que Deus não seja importante, mas não é um argumento
científico válido, além de não ser real para todo mundo. Algumas
pessoas acreditam em outros deuses, outras nem acreditam, então,
sempre que Deus entrar na conversa, haverá um ponto de vista
religioso não compartilhado por todos, o que deslegitima sua
presença como argumento válido.
Como
algumas pessoas não se darão ao trabalho de ir atrás da cura para
o mal que as assola, será necessário um tratamento intensivo de
urgência. Nesse texto, pretendo esclarecer algumas questões óbvias
para quem está dentro dos estudos de gênero, mas que ainda são
desconhecidas para os portadores do vírus.
Para
esses enfermos, os estudos de gênero afirmam que as pessoas podem
escolher ser homens ou mulheres. Não existe nada mais mentirosa que
essa afirmação. Os estudos de gênero NÃO afirmam isso! Os estudos
de gênero afirmam o seguinte (presta atenção que esta será a
primeira dose da cura): o sexo biológico não determina o gênero
social. Os estudos de gênero separam sexo biológico de papeis
sociais. Assim, cada pessoa nasce com determinada genitália (vagina
ou pênis), com determinados hormônios
(progesterona/estrogênio
ou testosterona) e com o DNA feminino ou masculino. Isso é
biológico. O que não é biológico são os papeis sociais que cada
gênero assume na sociedade. Assim, quando uma criança nasce, uma
série de atribuições é feita aquele corpo, dependendo da
genitália que veio com ele. Se for uma genitália feminina, as
atribuições serão: doce, passiva, amorosa, mãe, princesa, rosa,
bonecas, cuidado, cozinhar, lavar, limpar, casamento, restrição
sexual, entre outras. Ou seja, todas as características SOCIAIS
pertencentes às mulheres serão projetadas nesse corpo. Se for uma
genitália masculina, as atribuições serão: forte, másculo, uma
certa dose de agressividade, ativo, conquistador, competitivo, azul,
provedor, estímulo da sexualidade, pegador, entre outros. Ou seja,
todas as características SOCIAIS pertencentes aos homens serão
projetadas nesse corpo.
Onde
entram os estudos de gênero nisso tudo? Eles afirmam que essas
características sociais projetadas nos corpos não são biológicas,
são construções culturais! E mais, essas construções podem ser
diferentes em cada cultura. Assim, na cultura ocidental nós temos
determinadas construções culturais femininas e masculinas, mas nas
culturas indígenas ou aborígenes, por exemplo, as construções
culturais de feminino e masculino podem ser diferentes.
É
isso que quer dizer a famosa frase de Simone de Beavouir:
“Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de
feminino.”
Com
isso, ela quer dizer que nada de biológico define o Ser mulher na
sociedade, ou seja, nenhum destino biológico molda as
características atribuídas às mulheres. Ela quer dizer que Ser
mulher é algo elaborado pela civilização na qual essa mulher vive,
ou seja, pela cultura. Assim, aquelas características, ou papeis,
atribuídos ao corpo com genitália feminina são culturais, e não
biológicas. Primeira dose completa.
Segunda
dose: os estudos de gênero, e aqui entram também os estudos de
Judith Butler, afirmam que essas atribuições sociais, ou seja,
essas construções culturais são impostas às pessoas. Impostas no
sentido de estarem cristalizadas e naturalizadas em nossa cultura. A
maioria das pessoas se encaixa nesses papeis sociais, ou seja, a
maioria das pessoas pode se chamar de cisgênero (pessoas que têm o
sexo biológico e o gênero social
em concordância). Essas pessoas são aceitas pela sociedade e não
sofrem preconceito. No entanto, existem outras pessoas que não se
encaixam nesses papeis sociais. Essas são as transgêneros. São
pessoas cujo sexo biológico e o gênero social estão em
discordância. Essas são as identidades de gênero de cada pessoa,
que NÃO são uma escolha!! A pessoa nasce cisgênero ou trangênero,
ou se sente assim! Até aqui, ninguém falou que as pessoas são
obrigadas a ser transgêneros. Apenas foi dito que existem pessoas
que são. Se você não é uma pessoa transgênero, ótimo! Ninguém
acha que você deveria ser uma!
Os
estudos de gênero afirmam que as pessoas transgêneros sofrem
estigma por o serem, sofrem preconceito e não são aceitas pela
sociedade da mesma forma como as pessoas cisgêneros. São corpos
abjetos, segundo termo de Judith Butler. E é aqui que entra
Foucault, também, com o conceito de corpo normalizado, o corpo
educado. O corpo é educado para ser normal. E o que é ser normal? É
ser cisgênero, heterossexual e seguir as atribuições sociais que
são designadas para esse corpo de acordo com a genitália presente
nele. O problema não é ser cisgênero, heterossexual e seguir os
papeis sociais atribuídos aos homens e mulheres. O problema é essa
ser a única possibilidade de normalidade dentro da nossa sociedade.
Ocorre que alguns corpos não são “normais”. São considerados
corpos abjetos, corpos que não importam (Judith Butler).
O
que querem afinal os estudos de gênero? Os estudos de gênero não
querem, em hipótese alguma, impor que as pessoas sejam transgêneras,
ou homossexuais, ou que menino vire menina e vice versa. Quem diz
isso é o vírus que está se propagando pelo Brasil. Os estudos de
gênero querem que as pessoas que não se encaixam nesse conceito de
“normal” também sejam aceitas. Existem pessoas trans, existem
pessoas homossexuais, existem pessoas queer, existem pessoas que não
se encaixam nos papeis sociais atribuídos a sua genitália. Existem
mulheres que são agressivas, mandonas, competitivas, existem homens
que são doces, passivos, amorosos. Essas pessoas não se encaixam
nos papeis de gênero. O que os estudos de gênero querem é que
todos sejam aceitos, que todos possam ser quem realmente são.
Inclusive que as pessoas possam sim seguir os papeis de gênero e que
as mulheres possam ser doces, maternais e amorosas e que os homens
possam ser competitivos e ativos. Ninguém diz que não podem sê-lo.
O que os estudos de gênero querem é acabar com o preconceito e com
a ojeriza a quem não segue os padrões. Por isso os estudos de
gênero falam tanto em diversidade, pois as pessoas são diversas e
nós afirmamos que cada diversidade deve ser respeitada. E se é pra
colocar Deus no meio da conversa, o próprio Jesus ajudou a
prostituta, os leprosos e os famintos, ou seja, os párias sociais,
ao invés de xingá-los, excluí-los e humilhá-los. Quem mais fala
em Deus é quem menos pratica sua palavra. Quem realmente segue Jesus
ajuda a travesti, a transgênero, o homossexual, todos os párias
sociais da modernidade. E para aqueles que acreditam que essas
pessoas vivem sem preconceito, basta lembrar que o Brasil é o número
um em assassinato de travestis.
Creio
que essas palavras sejam apenas o tratamento inicial, que é longo e
doloroso, pois muitas mentiras terão que ser desfeitas. Mas ajuda as
pessoas a saber do que estão falando. A partir de agora, quem for
criticar os estudos de gênero, que o faça com propriedade e não
citando Deus ou mentiras adquiridas com esse vírus maldito que
impregnou as pessoas.
Muito bom e esclarecedor. Primeira vez que leio de se forma coesa e acessível a obviedade do que vemos no nosso dia a dia. 👏👏👏
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