Sérgio Pires é Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bacharelando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-graduando em Gestão Escolar pelo Instituto Federal do Rio Grande do Sul.
A
Glamourização do subemprego e o conceito de Empreendedorismo às avessas: a nova
realidade do Mercado de Trabalho Brasileiro.
Sempre
que utilizo serviços de transporte por aplicativo, tenho o hábito de conversar
com os motoristas, conhecer um pouco de suas histórias durante os curtos
períodos das viagens. Muito por uma característica pessoal (que é gostar de
conhecer e conversar com pessoas das mais diversas origens) a qual me aproxima
muito da disciplina que me conquistou durante os anos de minha primeira graduação,
a Antropologia, mas principalmente, e não consigo entender quem pensa diferente
disso, por percebê-los como trabalhadores iguais a mim, com longas jornadas de
trabalho, atendendo uma grande variedade de pessoas e humores. Muito mais do
que eu poderia imaginar.
Pois
bem, em uma dessas corridas, enquanto conversava com o motorista, ele me falou
sobre as vantagens e dificuldades do seu trabalho, e fiquei muito espantado
quando me revelou que trabalhava todos os dias, incluindo sábados, domingos e feriados,
uma média de 12 a 14 horas, para que pudesse sustentar sua família e as demais
despesas da casa.
Fiquei
por muito tempo lembrando aquela conversa, até que poucos dias atrás li um
relato, em uma rede social, que chamou muito minha atenção, tratava-se de uma
postagem de uma mulher jovem, reclamando que o carro do motorista do aplicativo
estava com o ar condicionado desligado, o que era um absurdo, uma vez que o
serviço estava sendo pago, e que, portanto, deveria atender as necessidades da
cliente. Fiz algo que me policio para não fazer, ou seja, ler os comentários, e
dentre esses muitos defendendo o motorista, cobrando uma maior empatia, pois
não se sabia ao certo qual era o problema que o carro apresentava, porém muitos
comentários eram extremamente marcados por uma hierarquização destas novas
relações de trabalho, onde cobravam fortemente que os carros de aplicativo deveriam
além de manterem o ar condicionado ligados na temperatura de acordo com o gosto
do passageiro, oferecer água e doces, e claro, com um atendimento muito
atencioso, conversando com o passageiro apenas se esse o consentisse.
Ora,
quem utiliza muitas vezes este serviço, sabe que, fora em situações
extraordinárias, os valores das corridas são razoavelmente baixos, além disso,
todos esses regalos e os custos com combustível, manutenção e o aumento do
consumo devido ao ar condicionado, saem do bolso do motorista, e não da empresa
A ou B. Ou seja, além de estas pessoas não perceberem os motoristas como
trabalhadores iguais a elas próprias, uma vez que sim, quem vende sua força de
trabalho pertence à classe trabalhadora, também tentam impor uma hierarquia,
onde o motorista é seu vassalo, e eles seus suseranos.
Se
antes do surgimento dessas novas ocupações, trabalhadores como porteiros,
faxineiros, recepcionistas, garis, entre outras categorias de profissionais,
eram totalmente invisíveis para a maioria da população, salvo se estes se
desviassem das funções sociais as quais lhe estavam destinadas, o estranhamento
e o desconforto ficavam muito evidentes, pois feriam o status quo dominante, agora estas novas funções, que estão
descobertas por leis trabalhistas e tem vínculos inexistentes ou muito frágeis,
passam a pertencer a essas categorias que não podem ter voz, ficando restritos
apenas a cumprir suas funções, ainda que nos dias atuais, essas funções são chamadas
de “empreendedorismo” por estas novas correntes de “pensamento” que agora
ocupam as altas esferas do poder em nosso país.
Não
muito tempo atrás, uma emissora de televisão exibiu uma novela que contava a
estória de uma vendedora ambulante de bolos que conseguiu, com o passar dos
anos, montar uma grande confeitaria. A partir do sucesso desta novela, a
emissora passou a produzir uma série de matérias, em seus programas
jornalísticos e de entretenimento, mostrando casos de pessoas que trabalhavam
de maneira autônoma, com a produção e venda de artigos alimentícios dos mais
variados, com uma narrativa muito vibrante ao mostrar o quanto as pessoas
gostavam e eram felizes com seu trabalho.
Um desses
casos me pareceu bem curioso, e inclusive foi com uma família aqui do Rio
Grande do Sul, onde pai e mãe trabalhavam no negócio da família, mas seus
filhos, já maiores, estavam cursando nível superior e não pretendiam dar
sequência ao trabalho dos seus pais.
Outro
caso curioso, aconteceu há poucos dias, em meio a todos os estragos e
transtornos causados pelas fortes chuvas no sudeste, uma foto ficou muito
popular nas redes sociais, onde mostrava um entregador destes serviços de tele
entrega, com sua bolsa térmica com o nome da empresa nas costas, caminhava em
meio à enchente, não sei ao certo qual seu destino, se estava indo para uma
entrega ou para sua casa. A foto ficou tão popular que este mesmo cidadão,
segundo informações colhidas, recebeu ofertas de emprego.
Como
bem sabemos, todo o trabalho é digno, e todos somos trabalhadores, das mais
diversas áreas, não pense o leitor mais desavisado, que estou tentando
escalonar em níveis de importância o trabalho em si e quem os executa, muito
longe disso. Na verdade o que tem me feito pensar muito nesses dias, é a
classificação que estão dando para esses trabalhadores: empreendedores.
Segundo
o Dicionário Michaelis, empreendedor significa: “Indivíduo que possui capacidade para idealizar projetos, negócios ou
atividades; pessoa que empreende, que decide fazer algo difícil ou trabalhoso.”,
e eis aqui questões importantes que abordaremos na sequência do texto.
Anos
atrás, quando o termo “empreendedor” passou a ser mais utilizado, especialmente
na grande mídia, se referia a um estrato social bem definido, uma vez que,
aqueles que se enquadravam nessa categoria, realizavam seus empreendimentos,
não como sua principal fonte de renda, mas sim a partir do seu excedente de
capital, que por sua vez era reinvestido em seus empreendimentos, dando assim
rendimento ao empreendedor. Ou seja, podemos tentar representar o que foi dito
acima através da fórmula: Capital + Meio de Produção (empreendimento) =
Capital. Possuir capital excedente e os meios de produção são peças chaves
nesse processo de empreendedorismo, pois se dispõe dos recursos para compra de
matéria-prima e mão de obra, não alijando a receita principal, pois o capital
investido é capital excedente, ou usando termos populares: “dinheiro fazendo
dinheiro”.
Outra
questão referente ao significado do termo se encontra no verbo “decidir”,
presente em sua definição. Esses trabalhadores e trabalhadoras de fato decidiram
começar essas atividades ou foi uma escolha, uma saída perante a falta de
oportunidades no mercado formal de trabalho? Abriram mão de vínculo
empregatício, plano de saúde empresarial e demais benefícios que os trabalhadores
segurados têm de livre e espontânea vontade? Acredito que em pouquíssimos casos
sim, mas em sua esmagadora maioria não, pois sem a possibilidade de trabalhar
formalmente, muitos são obrigados a trabalharem de modo informal para poder
garantir o sustento de suas famílias, mesmo sem ter o mínimo de cobertura por
parte do Estado. Dentre estes existem casos de “sucesso”? Poucos, representam a
exceção que justifica a regra.
Logo,
atribuir a estes trabalhadores, que compulsoriamente foram atraídos para o
mercado informal por não conseguirem empregos formais, o termo “empreendedor”, além
de muito equivocado por seu significado, é romantizar o subemprego, como uma
forma de amenizar o imenso índice de trabalhadores desempregados, uma vez que
no cálculo do percentual de desempregados, não se incluem estes trabalhadores,
o que produz dados incorretos a respeito da real situação da geração de
empregos no país.
Reafirmo
que a intenção deste texto não é menosprezar todo e qualquer tipo de trabalho
informal realizado por estes trabalhadores, que são verdadeiros sobreviventes
em meio ao caos do desemprego, mas sim tentar esclarecer que existem imensas
diferenças entre um cenário como este e o empreendedorismo, que em sua essência
se manifesta em determinados recortes sociais, que dispõe de muitos recursos,
suficientes para investir e não se preocupar se o lucro de seu empreendimento colocará
comida na sua mesa ou não, diferentemente dos trabalhadores e trabalhadoras que
retiram o sustento de suas famílias do fruto do seu trabalho diariamente, com o
risco de ter que escolher entre comer ou repor matéria-prima para trabalhar no
dia seguinte.
Perfeito, meu amigo. Estamos voltando à Idade Média das relações trabalhistas.
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