Rodrigo S. Nunes
Doutor em Serviço Social pela PUCRS
Pesquisador do NEPES
Núcleo de Estudos em Políticas e Economia
Social.
O pesquisador que aqui vos fala,
talvez seja só mais um observador da crônica cotidiana. Observa da
janela, seja de casa, seja do ônibus (do avião do trabalhador),
enquanto contraria as estatísticas, pelo simples fato de ser morador
de Alvorada/RS. O que não só se observa, mas também se percebe é
um cotidiano polarizado entre carências de um lado e o privilégio e
domínio de outro.
Como disse István Meszáros
(1998), vivemos a era de uma crise histórica sem precedentes. “Uma
crise estrutural, profunda, do próprio sistema do capital”.
Trata-se de um sistema essencialmente antagônico devido à estrutura
hierárquica de subordinação do trabalho.
O
que se verifica é a miséria de grandes contingentes da população
superexplorada funcionando como mecanismo de financiamento de parte
crescente do lucro especulativo, do rentismo.
Estamos na era da barbárie
social, com novas dimensões que expõem os próprios limites do
capital como força civilizatória. Há um discurso que busca a
integração dos “excluídos” no que os exclui, na própria
sociedade que culpabiliza a família pelas violações vividas por
seus membros, e os “marginaliza”. A sociedade da integração no
princípio do contrato e da igualdade vem se firmando como a
sociedade da incerteza e do medo. O medo de se tornar ninguém e
coisa alguma, de ser descartado e banalizado, o medo daquilo que não
se vê. Isso é de fato, por inteiro, a exclusão social.
O Brasil é um país com
histórica concentração da riqueza e do poder político. Passamos
por vários ciclos econômicos, como pau-brasil, cana de açúcar,
ouro, café e industrialização. Passamos também por diversos
regimes políticos, como colônia, império, república, ditadura e a
recente e frágil democracia. Toda essa trajetória econômica teve a
“prevalência de um verdadeiro paraíso da improdutividade de ricos
rentistas montados em cima da profunda desvalorização do trabalho”.
Como demonstram os dados históricos trabalhados desde o tempo da
Colônia, somos um país refratário à participação popular. A
base da desigualdade nunca foi atingida e medidas de cunho mais
radical, tais como a reforma agrária, a taxação progressiva de
fortunas, entre outras iniciativas ainda estão longe de serem
implementadas. Assim, o trabalho tratado como emprego, em muitos
casos precários que mascaram a chamada inclusão precária.
A realidade é mascarada também
pela ausência de sistemas de informações, dados e análises de
realidade já previstas como função das políticas públicas. Como
exemplo, podemos apresentar a Situação de Rua, cuja vulnerabilidade
e exposição às variações climáticas ficam evidentes. Esse é um
fato apontado em nossas pesquisas, assim como o frio e a chuva,
especialmente durante o inverno, sendo o que menos as pessoas gostam
na rua (há quem diga que estão na rua porque querem). A falta de
abrigo também interfere em outros aspectos do cotidiano, como por
exemplo, a falta de acesso a locais para a realização da higiene
pessoal e a falta de banheiros públicos. Assim é dormir na rua.
Situação que se agrava em tempos de pandemia por coronavírus.
No
Brasil o início de uma tentativa de trabalho com dados foi a partir
do mapeamento da fome no país e também os estudos sobre as crianças
em situação de trabalho infantil, na década de 1990, que exigiram
uma ação estatal. Hoje temos a Vigilância Socioassistencial como
uma das funções da política de Assistência Social. Estando
restrita pelo contingenciamento de recursos a partir da Emenda
constitucional do teto dos gastos.
Infelizmente o quadro frente à
trajetória histórica de fragmentações e descontinuidades que
impediu a Assistência Social como política pública continua sendo
um desafio, também para outras políticas. Sabemos que a assistência
ao outro é uma prática antiga da humanidade, um ato de benesse ou
aprovação divina. E, historicamente no Brasil, encontramos uma área
que não foi concedida como campo de definição política dentro do
universo das políticas sociais em torno do Estado, construídas
entre relações ambíguas e contraditórias.
Retornando um pouco na história
vemos uma luta, de início, a favor dos grupos feudais e clericais
contra a burguesia como portadora da revolução. Porém, há uma
mudança de função da teoria que é acompanhada pela burguesia a
partir da luta desta classe em ascensão contra os restos de uma
organização social que se transformou em obstáculo para sua
dominação absoluta como uma camada privilegiada. O prof. Coutinho
chama de conservadorismo reacionário,
como no caso dos defensores do Ancien
Régime e do “direito
divino” dos monarcas e apresenta o início de um conservadorismo
liberal com
possibilidades de algumas reformas, desde que não sejam
revolucionárias.
Voltando ao processo de
rualização, ou seja, ao processo que pode iniciar na esfera
doméstica, esfera das relações primárias, e resulta na rua como
espaço de sobrevivência e/ou moradia (NUNES, 2019): sobre essa
realidade poucos dados temos, como se percebe neste questionamento de
um gestor: “quando a gurizada sai do abrigo, qual é a referência,
para onde vai ou o que faz?”. Percebidas, mais uma vez, as lacunas
na proteção social e as manifestações de desproteção à
população.
Destarte, ficam ocultas raízes
estruturais que escancarariam as contradições de um modo de
produção em crise. Mais um exemplo tem relação com os
desligamentos das pessoas enquanto usuárias dos serviços sociais:
“quantos a gente consegue por ter concluído o Plano de Atendimento
dentro do serviço? Quantos são desligamentos por outros motivos?.”
Embora populações com
características de circulação e ocupação do espaço “da rua”
sempre tenham feito parte da história, é na atual etapa do modo de
produção que ficam evidentes os múltiplos condicionantes para o
agravamento desta situação. Ressalta-se que ao ser (in)visível,
esse segmento não demanda o investimento e a responsabilidade do
Estado, que por sua vez não prioriza o investimento em segmentos que
não interessam ao mercado. É necessária a capacidade de leitura
fora da ótica do mercado.
Com a ótica de mercado ou livre
iniciativa as atribuições do Estado ficam limitadas à garantia da
propriedade privada e de contratos, basicamente. Políticas atuais de
cunho neoliberal ganham força e são ainda reforçadas reeditando
velhos paradigmas conservadores e de responsabilização das famílias
pela proteção/desproteção de seus membros
É característica dessa etapa do
modo de produção capitalista a busca da ampliação de lucros
independente dos impactos na vida social, na coletividade. Dessa
maneira, o capital “especulativo parasitário” é um capital que
não produz excedente-valor e não favorece nem contribui para a sua
produção. No entanto, ele se apropria do excedente e o exige em
magnitude crescente. Por isso, é muito importante envidar esforços
no sentido de trabalhar a interpretação sistemática dos dados e
fundamentá-las a partir de teorias explicativas que contemplem a
totalidade, em seu movimento histórico e contraditório, para que a
gestão do conhecimento seja processada numa direção definida com
dignidade e tomada de decisão seja mais bem instruída para o
atendimento dos interesses coletivos.
E
quando falamos de dignidade humana falamos também de um fim
material. Um objetivo específico, em que o acesso universal e
igualitário aos bens e serviços, faz com que a vida seja digna de
ser vivida. É uma manifestação do encontro do sistema com seus
próprios limites intrínsecos, porém coloca-se como uma tarefa
viável, ir além do próprio capital como um modo de controle do
metabolismo social.
O futuro do mundo dependerá em
boa medida da correlação de forças existentes entre as diferentes
frações do capital e, ao mesmo tempo, das lutas sociais que, sem
dúvida, vão surgir nesta batalha que acentua também o perigo de
guerra total (Dierckxsens; Piqueras, 2018).
A dialética considera todas as
coisas em seu devir e, portanto, se reconhece a realidade num
movimento em espiral onde o fechamento de um dos ciclos possibilita o
início de outro, que conserva parte do ciclo anterior, dependendo do
quanto se supera tais oposições, mas configura-se como novo. Uma
transição histórica curta ou longa dependendo das forças em
contradição. Destacar e desvendar a contradição significa mostrar
os opostos em luta e movimento.
Diante do exposto, as populações
em situação de rua, dada as suas condições em razão das
profundas desigualdades a que estão expostas, deveriam ser um dos
primeiros segmentos a serem priorizados pela função de vigilância
socioassistencial, assim como os condicionantes desta situação
deveriam ser objeto também da vigilância em saúde, mas o que se
verifica é sua invisibilidade, para a proteção, desde a prevenção.
Incontestável a complexidade dos processos de rualização e
considerando a morosidade na obtenção de resultados ou dos
indicadores de efetividade, embora apresentem alguns que se limitam a
mostrar quantitativos exitosos no atendimento à população, talvez
um dos fatores determinantes da (in)visibilidade das Populações em
Situação de Rua possa ser explicado pelo resultado dessa possível
(des)conexão. Conexão entre a perspectiva de universalidade e
identificação de desproteções sociais.
Eis que até aqui aquele
pesquisador que observava da janela a crônica cotidiana e que
percebia uma sociedade polarizada (todas as referencias encontram-se
citadas na tese de doutorado defendida em março de 2019) entre
carências, privilégios e domínio do outro, já sinalizava a
necessidade de catástrofes para repensar as características básicas
da sociedade em que vivemos. E continuando desta vez apoiado em
Slavoj Zizek (2020), digo que não estamos apenas lidando com ameaças
virais, sejam na dimensão real como virtual. Podemos ver no
horizonte todo tipo de outras catástrofes que estão chegando, ou já
estão acontecendo diretamente: secas, ondas de calor, tempestades
maciças, etc.
Um dos símbolos da epidemia são
as imagens dos passageiros presos (em quarentena) em enormes navios
de cruzeiro, onde Zizek é tentado a dizer que este é o fim da
obscuridade de tal ostentação. Temos que cuidar para que viajar
para ilhas distantes ou outros destinos tão seguros nas férias não
se torne novamente o privilégio de uns poucos ricos, como era há
décadas atrás com as viagens aéreas.
E por que têm pessoas afirmando
que a atual pandemia parece não atingir moradores de rua?
Simplesmente porque há uma intencional subnotificação de casos,
seja por falta de testes ou até por um “vírus ideológico” que
coaduna com a ausência de uma profunda análise de dados de
realidade. Assim são as formas de (des)conexão entre indicadores de
efetividade na realidade e as complexas vivências concretas do
cotidiano vivido. Da mesma forma em que não há conexão e
visibilidade para os reais, concretos e complexos fatores que motivam
os processos de rualização, na relação com o atual modo de
produção.
Outra vista da janela, ou outro
ponto desta observação, é o fato de continuarmos a destruir o
planeta em proveito de uma minoria, enquanto os recursos ao
desenvolvimento sustentável e equilibrado são esterilizados pelo
sistema financeiro mundial. Entre 1970 e 2010 destruímos 52% da
fauna do planeta (WWF, 2016). Temos como atividades de destruição a
sobre pesca oceânica, a destruição das florestas, a contaminação
e sobre-exploração dos recursos hídricos e semelhantes nos mais
diversos setores. E para finalizar a reflexão, e que para o
pesquisador que vos fala fica urgente, o convite é para a necessária
passagem por uma regeneração da humanidade, com a evidência da
tese de que precisamos, mais do que nunca, lutar contra o
capitalismo, pela humanidade!
Referências Bibliográficas:
NUNES,
Rodrigo dos Santos. Como
a população em Situação de Rua está contemplada no processo de
Vigilância Socioassistencial?.
Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social/PUCRS, 2019.
ZIZEK,
Slavoj. Um golpe como o de “Kill Bill” no capitalismo in: DAVIS,
Mike, et al. Coronavírus
e a luta de classes. Terra
sem Amos: Brasil, 2020.
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