domingo, 29 de março de 2020

"A necessidade quase literal de mastigar o patriarcado"



Márcia Antunes
Artista visual, arte terapeuta, educadora e artesã, bordadeira, ex-punk, reikiana, atéia, motoqueira, viciada em livros, chá e filme francês







O mundo foi pensado e construído por homens.

             No início dos tempos, as mulheres eram veneradas pela magia da gestação. Eram seres preciosos e tratadas como divindades. Os grupos sociais mantinham sua harmonia exatamente por serem centrados nos valores deste sagrado feminino.

          Com a mudança da vida nômade para um lugar mais próximo das plantações os homens puderam observar mais de perto o ciclo de vida dos animais e perceber que a proximidade com o macho fazia com que as fêmeas pudessem dar crias. Daí passam a perceber a sua própria participação na fecundação das mulheres, fato até então ignorado.
Até ali, as comunidades eram matriarcais, SEM domínio de qualquer gênero sobre o outro, totalmente igualitárias. (Bem fácil imaginar o que esta descoberta impactou).

       Em volta de suas plantações, os grupos precisaram defender seus territórios, valorizando e priorizando a força física masculina.

          Juntamos isso à descoberta da sua participação “fundamental” na gestação das mulheres, o poder masculino se sobrepõe ao das fêmeas.
Mais filhos significavam mais força de trabalho, que significava mais riqueza e conferia mais importância ao macho.

          Por conta do controle dos seus bens e de sua herança a filiação passa a ser igualmente importante e o homem passa a controlar a casa e a mulher que irá engravidar dele. As mulheres passam a ser vistas como incubadoras e mercadorias preciosas.
As relações que eram igualitárias passam a ser de controle e poder do homem sobre a mulher.

                Com o passar dos tempos as religiões ainda sacralizam  a união entre as famílias criando laços rígidos que legitimam este controle.
O que descrevi até agora não é lenda. É um super resumo de fatos históricos que comprovam e explicam a estrutura patriarcal do mundo, lá na sua formação. Sim, a coisa já começou torta.

                   São milhares de anos vivendo esta estrutura e ainda hoje podemos ver homens se defendendo de acusações com mais energia  do que usam para abrir a mente (e os ouvidos) às mulheres que tentam explicar atitudes machistas.
Entendo que possa ser um esforço imenso para um cara não se defender (ele foi criado pra isso); ou aceitar uma opinião que seja diferente da sua; ou, no mínimo, consumir materiais produzidos por mulheres.

                       Este mesmo cara que acha que chamar a mulher de “minha” deveria parecer ultra romântico aos ouvidos dela. E talvez, ela ainda nem perceba a armadilha que é se sentir “dele”.

                     Muitos caras bacanas realmente respeitam suas parceiras, são sensíveis às necessidades da relação etc, etc. Mas ainda assim recebem todos os benefícios de um mundo patriarcal. Não estão num lugar incômodo o suficiente para lutarem por uma mudança. Sei que isso pode parecer óbvio, mas não pra eles. Já pensam em mudanças mas ainda colhem os antigos e suculentos frutos do machismo.

                  Existe tanta coisa escrita sobre este tema que precisa ser debatida, que escrever sobre isso parece mais um lustre no ego do que uma contribuição real. Mas preciso ser didática.

              As feministas não odeiam homens (digo que não é sua premissa). Porque simplesmente o feminismo NÃO FALA DELES. Apenas estamos acostumados a um tipo de “educação” que prioriza a tolerância (palavra que abomino) e a doçura, como condição primeira do gênero feminino. Então, qualquer ação que fuja disso vai parecer “não feminina”.

                  Parece desrespeito pensar somente em si mesma quando sempre foi criada para relevar, pacificar, baixar a voz e ser suave em suas relações. A mulher nunca é algo EM SI. Parece que só existimos se relacionadas À ALGUÉM ou alguma coisa. 

             Desde pequenas recebemos brinquedos que reforçam a condição da família (futura). Realizando brincadeiras “adequadas” a nossa frágil condição, não somos estimuladas a acreditar em nossa voz. Somos ensinadas a focar no objetivo único de ter uma família. Para isso, iremos manter dietas, usar roupas, acessórios e objetos que nos coloquem em posição de luta com outras mulheres até que um dia, um ser magnânimo irá nos “escolher” para sua esposa. Então, passaremos a cuidar da casa e deste magnânimo ser.

                      Não sei tu, que está lendo, mas na minha cabeça isso não faz sentido algum!

             O nível de exigências imposto às mulheres é sempre alto demais. Aliás, é impossível! E será sempre! Pois isso mantém a grande olimpíada que é “ser mulher”.

           Confesso que explicar assim, mastigadinho este processo histórico cruel e estrutural, me deixa exausta. Porque este é apenas um dos vários papéis que eu, mulher,tenho que assumir diante de um mundo de homens acostumados a bater em seus peitos jurando que estão sendo injustiçados pela luta que afinal, nem foram convidados.

                   Sigamos lutando e, vez que outra, parando pra explicar o que deveria ser óbvio.







4 comentários:

  1. Ótimo texto. O patriarcado não é inato a espécie humana, ele tem um início. E se há algo que nos prende e nós mantêm nesta posição de inferioridade, esse algo é a violência.

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  2. Não tem saída, é uma luta permanente. E, provavelmente, inglória. Obrigada pelo texto Márcia.

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