Jefferson Meister Pires é Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS, funcionário público e pesquisador.
Eu
lembro que em praticamente todas as histórias que li as quais se
passavam em navios no alto mar, havia uma ordem que era repetida
interminavelmente pelos capitães e imediatos superiores; “Lavem o
Convés”!!! Essa era uma tarefa diária e obrigatória, não havia
um dia sequer em que o navio não tivesse a limpeza do convés
checada pelo capitão.
Uma
das explicações mais plausíveis para essa compulsão à limpeza
estava assentada no fato que nos porões de qualquer navio sempre
existiam ratos, esses pequenos roedores se propagavam em lugares
escuros, úmidos e com acúmulo de sujeiras ou restos da atividade
humana. Por saberem da dificuldade de controlar infestações e
principalmente as epidemias que poderiam dizimar sua tripulação, os
capitães sabiam que era necessário manter muitas partes de seus
navios sempre limpas e protegidas das visitas indesejadas dos
pequenos roedores e seus parasitas, a velha Eurásia descobriu isso
de forma decisiva durante o período da chamada “Peste Negra” que
dizimou cerca de um terço da população europeia ao longo do século
XIV.
Assim
como nos grandes navios do passado, nosso espaço de convivência,
nossas vidas e até mesmo nossa própria psique possuem cantos
obscuros e pouco visitados, lugares onde costumamos depositar dejetos
e coisas as quais queremos esquecer que existiram. Exercemos um
esforço diário para dar ordem naquilo que nos cerca, para manter a
vista apenas o que é aceitável pela maioria, ou por aqueles que
prezamos e que nos prezam. A limpeza que nós, enquanto capitães de
nossos navios, fazemos é, na maioria das vezes, apenas atirar para
os cantos obscuros aquilo que não temos coragem de lidar agora, ou
que de alguma forma queremos que exista lá escondido para que
possamos acessar caso seja muito necessário.
Quando
deixamos de limpar adequadamente, ou quando acumulamos sujeira demais
nos porões, os ratos começam a aparecer. Primeiro em pequenas
quantidades com poucas necessidades, depois com maiores exigências e
muito maior audácia, a ponto de chegarem a andar entre nós sem se
preocuparem em serem vistos, alguns inclusive querem ser vistos para
tentar ganhar uma migalha. Muitos de nós, pouco avisados, chegam a
tomar esses ratos como amigos, mascotes, engraçados ou inusitados.
Mal sabem que em breve pode ser tarde para impedir o que eles trazem
junto.
Mas
mesmo quando toleramos a presença dos ratos, um rato só chega a ser
capitão de um navio quando a sujeira tomou conta a ponto de assustar
demasiadamente todos aqueles que vivem ali, inclusive aqueles que
deveriam limpar. É somente quando passamos a acreditar que a sujeira
se impregnou em nossa cabine que costumamos soltar as criaturas
obscuras que guardamos lá no cantinho profundo de nossas vergonhas.
Há cerca de 100 anos atrás a Europa experimentou a ascensão de
algumas dessas criaturas produzidas em nossos porões morais,
nascidos no seio da sujeira remanescente de guerras anteriores,
amamentados em ódio e frustrações, educados como crianças
bagunceiras as quais faziam vistas grossas os cidadãos apavorados
com as condições em que viviam, tratando pequenos monstrinhos como
exóticos e aceitáveis.
As
consequências de um rato no comando nunca foram saudáveis, segundo
contam nossos historiadores. O que costuma a ocorrer é uma grande
transformação do navio, não para que convivamos melhor e mais
confortáveis, mas para que eles nunca mais precisem voltar aos
porões, para que eles passem a nos ensinar a comer dejetos e viver
em ódio, para que nós jamais consigamos ser mais do que simples
ratos na forma de seres humanos. Quando ratos chegam ao poder ele
tentar ensinar aos humanos que o certo é ser rato, embora pra eles
guardem sempre o melhor queijo e o melhor leite.
Se
hoje temos um rato capitão ou um capitão rato na capitania foi
porque alguém deixou tudo sujo demais, alguém fez acordos com
ratos, alguém tolerou que ratos fossem cada vez mais se tornando
salientes e comuns, deixaram que o exercício do poder se tornasse um
fator de distinção entre seres humanos, sentiram-se intocáveis, e
isto fez com que esquecessem dos ratos à sua volta, ratos não
perdoam.
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