Lahis Brandão
Estudante de Tradução e Interpretação em Libras nas instituições
UFRGS e IFRS; Feminista (não do tipo divertido); Bodypiercer; Gateira;
Quer saber: Quem mandou matar Marielle?
A violência doméstica é uma
realidade inegável no Brasil, uma vez que seus números são
alarmantes. Um levantamento realizado em 2019 indica que o nosso país
registre um caso de agressão a mulher a cada 4 minutos, isso sem
mencionar todos os acontecimentos que não chegam a ser registrados.
Não à toa, este mesmo ano finalizou com mais de um milhão de
processos de violência doméstica, sendo 563,7 mil novos casos (CNJ,
2020). Somente em janeiro de 2020 houve um aumento de 233% nos casos
de feminicídio consumado. É neste mesmo contexto que o Covid-19
chegou ao Brasil, forçando muitas mulheres a permanecerem trancadas
em seus lares junto com seus parceiros, ou seja, de quarentena com o
agressor.
Na
segunda semana de março de 2020 a OMS (Organização Mundial de
Saúde) declarou pandemia do novo Coronavírus Covid-19. Desde então,
muitos países começaram a tomar medidas para conter o vírus, sendo
uma das medidas mais importantes para combater a proliferação
deste, o ato de ficar em casa e evitar ao máximo o contato com
outras pessoas.
Embora
o governo federal brasileiro esteja mostrando uma certa resistência
para seguir as essas orientações, ainda assim muitos governos
estaduais agiram de maneira mais ágil e em consenso com a OMS,
decretando o fechamento de comércios não essenciais, e colocando
muitas famílias dentro de suas casas por tempo integral. Por meio
disso, muitas mulheres trabalhadoras e/ou donas de casa ficaram
impossibilitadas de sair de seus lares, seja para trabalhar ou para
levar seus filhos a escola, uma vez que as instituições de ensino
também foram fechadas para evitar aglomerações. Ao mesmo tempo em
que o governo brasileiro se nega a seguir as orientações da OMS,
também não parece se preocupar em criar novas políticas públicas
para as mulheres, levando em consideração o contexto da pandemia de
Covid-19 e o quanto isso tem potencializado o sofrimento e a
insegurança das mulheres vítimas de violência doméstica.
Infelizmente
essas têm sido as condições em que se encontram milhares de
mulheres em todo o Brasil. O misto de insegurança, exposição à
violência, vulnerabilidade econômica, sobrecarga de trabalho
doméstico e incerteza sobre a possibilidade de melhorias, tem
assombrado as mulheres brasileiras.
Se
anteriormente a pandemia as estimativas de mulheres que sofrem
violência doméstica e não denunciam (pelos mais variados motivos)
já era bastante alta, atualmente acreditamos que esse número possa
ter multiplicado, uma vez que a quantidade de mulheres que denunciam
dobrou, não apenas no Brasil mas e vários outros países. Em
relação às mulheres que não estão denunciando, os motivos podem
ser diversos, uma nova razão seria o medo de sair de casa e contrair
o coronavírus, o que acaba impedindo essas mulheres de procurar
ajuda, assistência médica ou legal perante episódios de violência
doméstica. É importante considerar que boa parte das mulheres
recorrem primeiramente a um hospital quando sofrem violência, e
neste momento de pandemia, podem vir a sentir que o ambiente seja
mais perigoso do que seguro.
O
isolamento social que no Brasil está sendo apelidado de “quarentena”
faz com que as vítimas de violência doméstica tenham ainda menos
contato com suas redes de apoio, ao mesmo tempo em que ficam ainda
mais a deriva do agressor, vulneráveis aos mais diversos conflitos,
agressões físicas, psicológicas e/ou verbais, crises de ciúmes,
controle, etc. No entanto, a quarentena não pode ser vista como a
causa da violência doméstica, ela apenas potencializa algo que já
é uma realidade no Brasil e no mundo há muitos anos.
O
machismo está presente em todas as camadas da nossa sociedade. Se
trata da ideia de que a mulher é inferior ao homem, e posse dele. De
maneira consciente ou não, os homens objetificam as mulheres
independente do nível da relação que tenham com elas. Por meio
disso, muitos relacionamentos abusivos são construídos mantendo a
mulher em posição subalterna, sempre desfavorecida em detrimento do
homem. Infelizmente, essas atitudes e pensamentos machistas não
podem “dar uma trégua” neste momento de crise, não é como se
fosse algo facilmente controlável em nossa sociedade, uma vez que
está enraizado nela.
O
machismo não fica de quarentena, não é um comportamento que se
perde em tempos de Coronavírus, mas o machismo está presente na
quarentena das mais variadas famílias porque ele antecede essa
situação de pandemia.
Quando
falamos de mulheres que são atravessadas pela violência doméstica,
acabamos por nos esquecer de que a classe Mulher também tem sua
diversidade. Nossas políticas são pensadas para o atendimento de
mulheres ouvintes, excluindo uma parcela bastante significativa da
população. O telefone lilás (Disque 180), por exemplo, é um
recurso para denunciar violência contra a mulher, mas que ao mesmo
tempo não pode ser utilizado por mulheres surdas. Talvez neste
período de quarentena em que pelo fato das mulheres estarem isoladas
com seus agressores, causando uma maior dificuldade de realizar
denúncias por telefone, pensemos em outras políticas para atender a
todas as mulheres surdas e ouvintes.
A
decisão de ir até uma delegacia registrar uma ocorrência não
costuma ser fácil, afinal alguns fatores costumam impedir, como por
exemplo: Ameaça a sua vida e a vida de seus filhos ou parentes,
vergonha, medo de serem desacreditadas e culpabilizadas, medo de
enfrentar o processo e “não dar em nada” e atualmente, medo do
vírus entre vários outros motivos. Agora, imaginemos que além
destes há ainda um outro fator: Não há alguém que fale a sua
língua para lhe atender. Esta é a realidade das mulheres surdas no
nosso país.
Quando
uma mulher surda decide ir até uma delegacia, precisa se preocupar
em levar alguém que possa a ajudar a realizar a comunicação, pois
as delegacias brasileiras não oferecem profissionais tradutores e
intérpretes de Libras. Cabe a mulher surda ter uma preocupação a
mais que qualquer outra mulher ouvinte, ela precisa buscar, sozinha,
uma maneira de garantir que será vista.
Geralmente,
as mulheres em situação de violência perdem seus laços familiares
e sociais. Os homens violentos e ciumentos costumam controlar os
movimentos da parceira. Por isso, em muitos casos as relações com
família e amigos ficam restritas, ocultando a situação. Nessa
lógica, uma mulher distante da sua rede de apoio é uma mulher ainda
mais vulnerável. No caso da mulher surda, ela pode ficar
impossibilitada de solicitar a alguém de confiança para
possibilitar a comunicação na delegacia, sendo essa mais uma
barreira que impeça a mulher surda de denunciar, já que ela
“depende” de uma terceira pessoa. A situação fica mais crítica
com a pandemia, uma vez que o isolamento social, tão necessário
para conter o vírus, pode também acabar por conter essas mulheres
silenciadas em seus lares.
As
mulheres com deficiência são mais vulneráveis à violência
doméstica quando comparadas com as mulheres ouvintes que não tem
deficiência. Em 2019, o tema foi debatido na CPI do Feminicídio do
Rio de Janeiro. A estimativa apresentada foi de que as
mulheres
com deficiência tenham 4 vezes mais chance de sofrer algum tipo de
violência
quando
comparado com as mulheres sem deficiência. Uma dificuldade analisada
nesta
atividade
também foi a da ausência de dados nos registros, o que dificulta o
levantamento
de
dados estatísticos. É importantíssimo que os registros policiais
contenham a informação
de
que a mulher possui deficiência ou não. E neste caso, é importante
acrescentar a surdez como uma outra característica, já que há uma
diferença bastante significativa entre uma mulher com deficiência e
uma mulher surda. Quanto a isso, Perlin e Vilhalva fazem a
seguinte
afirmação: A mulher surda é comparada à mulher deficiente. Muitas
vezes a sociedade continua com a educação colonialista sobre a
mulher surda sem noção de sua
diferença.
No momento em que somos chamadas de deficientes, somos comparadas às
mulheres ouvintes. Essa é uma representação que assume aspectos de
discriminação, de nossa língua e cultura, pelo completo
desconhecimento do valor linguístico que a língua de sinais possui
e também pelo completo desconhecimento da significação do ser
mulher surda, ou seja, ser uma pessoa que entende o mundo pelos olhos
e necessita de informação em sua língua visual (Perlin e Vilhalva,
2016, p.6)
As
medidas de identificação em relação a ter ou não alguma
deficiência, se presentes nos registros policiais, são vitais para
que possamos avançar em relação a existência de dados
estatísticos, para além disso é importante que as mulheres surdas
tenham um registro a par, pois a partir disso poderemos mapear as
regiões onde há mais necessidade da presença de tradutores e
intérpretes de Libras. Afinal, essa é uma necessidade específica
da comunidade surda e deve ser pensada e construída mesmo em tempos
de Coronavírus, onde estratégias precisam ser tomadas para que
essas mulheres tenham condições e a garantia de realizar uma
denúncia com segurança.
É
urgente que um recorte seja feito em relação às mulheres surdas
para que possamos avançar em políticas públicas para todas.
Afinal, a barreira linguística é o principal fator que impede
mulheres surdas de denunciar violência doméstica, e em tempos de
pandemia isso precisa ser considerado antes que traumas e danos
irreparáveis cheguem a acometer mais mulheres. Sabemos que temos um
inimigo invisível nas ruas, famoso Covid-19, no entanto, dentro dos
lares de milhares de mulheres em todo o país há um inimigo visível,
embora esteja passando quase que imperceptível no meio dessa crise.
É necessário que ambos sejam contidos.
Referências:
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BRASIL. Mulheres com deficiência têm mais dificuldade para
denunciar violência.
07
de ago. de 2019. Disponível em: <
https://agenciabrasil.ebc.com.br/diitos-humanos/not
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> Acesso em:
16
de abr. de 2020.
BBC
NEWS. 11 Motivos que levam as mulher a deixar de denunciar casos de
assédio e
violência
sexual. 13 de out. de 2017. Disponível em: <
https://www.bbc.co m/portuguese/
brasil-
41617235 > Aceso em: 16 de abr. de 2020.
CNJ.
Processos de violência doméstica e feminicídio crescem em 2019. 09
de mar. de 2020.
Disponível
em: https://www.cnj.jus.br/processos-de-violencia-domestica-e-
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Acesso em: 15 de abr. de 2020.
COSTA,
Giulia. Mulheres surdas não conseguem denunciar violência doméstica
por falta de
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O Globo. 14 de abr. de 2019. Disponível em: <
https://oglobo.glo
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> Acesso em: 16 de abr. de 2020.
FOLHA
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> Acesso em: 15 de abr. de 2020.
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Disponível em: < https://istoe.com.br/
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Acesso em: 15 de abr. de 2020.
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INES - Revista Forum. Rio de Janeiro. n. 33. jan-jun 2016. Disponível
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de
2020.
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