segunda-feira, 25 de maio de 2020

Pandemia e violência doméstica contra as mulheres surdas



Lahis Brandão
Estudante de Tradução e Interpretação em Libras nas instituições
UFRGS e IFRS; Feminista (não do tipo divertido); Bodypiercer; Gateira;
Quer saber: Quem mandou matar Marielle?







     A violência doméstica é uma realidade inegável no Brasil, uma vez que seus números são alarmantes. Um levantamento realizado em 2019 indica que o nosso país registre um caso de agressão a mulher a cada 4 minutos, isso sem mencionar todos os acontecimentos que não chegam a ser registrados. Não à toa, este mesmo ano finalizou com mais de um milhão de processos de violência doméstica, sendo 563,7 mil novos casos (CNJ, 2020). Somente em janeiro de 2020 houve um aumento de 233% nos casos de feminicídio consumado. É neste mesmo contexto que o Covid-19 chegou ao Brasil, forçando muitas mulheres a permanecerem trancadas em seus lares junto com seus parceiros, ou seja, de quarentena com o agressor.

    Na segunda semana de março de 2020 a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou pandemia do novo Coronavírus Covid-19. Desde então, muitos países começaram a tomar medidas para conter o vírus, sendo uma das medidas mais importantes para combater a proliferação deste, o ato de ficar em casa e evitar ao máximo o contato com outras pessoas.

     Embora o governo federal brasileiro esteja mostrando uma certa resistência para seguir as essas orientações, ainda assim muitos governos estaduais agiram de maneira mais ágil e em consenso com a OMS, decretando o fechamento de comércios não essenciais, e colocando muitas famílias dentro de suas casas por tempo integral. Por meio disso, muitas mulheres trabalhadoras e/ou donas de casa ficaram impossibilitadas de sair de seus lares, seja para trabalhar ou para levar seus filhos a escola, uma vez que as instituições de ensino também foram fechadas para evitar aglomerações. Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro se nega a seguir as orientações da OMS, também não parece se preocupar em criar novas políticas públicas para as mulheres, levando em consideração o contexto da pandemia de Covid-19 e o quanto isso tem potencializado o sofrimento e a insegurança das mulheres vítimas de violência doméstica.

     Infelizmente essas têm sido as condições em que se encontram milhares de mulheres em todo o Brasil. O misto de insegurança, exposição à violência, vulnerabilidade econômica, sobrecarga de trabalho doméstico e incerteza sobre a possibilidade de melhorias, tem assombrado as mulheres brasileiras.
Se anteriormente a pandemia as estimativas de mulheres que sofrem violência doméstica e não denunciam (pelos mais variados motivos) já era bastante alta, atualmente acreditamos que esse número possa ter multiplicado, uma vez que a quantidade de mulheres que denunciam dobrou, não apenas no Brasil mas e vários outros países. Em relação às mulheres que não estão denunciando, os motivos podem ser diversos, uma nova razão seria o medo de sair de casa e contrair o coronavírus, o que acaba impedindo essas mulheres de procurar ajuda, assistência médica ou legal perante episódios de violência doméstica. É importante considerar que boa parte das mulheres recorrem primeiramente a um hospital quando sofrem violência, e neste momento de pandemia, podem vir a sentir que o ambiente seja mais perigoso do que seguro.

     O isolamento social que no Brasil está sendo apelidado de “quarentena” faz com que as vítimas de violência doméstica tenham ainda menos contato com suas redes de apoio, ao mesmo tempo em que ficam ainda mais a deriva do agressor, vulneráveis aos mais diversos conflitos, agressões físicas, psicológicas e/ou verbais, crises de ciúmes, controle, etc. No entanto, a quarentena não pode ser vista como a causa da violência doméstica, ela apenas potencializa algo que já é uma realidade no Brasil e no mundo há muitos anos.
   O machismo está presente em todas as camadas da nossa sociedade. Se trata da ideia de que a mulher é inferior ao homem, e posse dele. De maneira consciente ou não, os homens objetificam as mulheres independente do nível da relação que tenham com elas. Por meio disso, muitos relacionamentos abusivos são construídos mantendo a mulher em posição subalterna, sempre desfavorecida em detrimento do homem. Infelizmente, essas atitudes e pensamentos machistas não podem “dar uma trégua” neste momento de crise, não é como se fosse algo facilmente controlável em nossa sociedade, uma vez que está enraizado nela.
     O machismo não fica de quarentena, não é um comportamento que se perde em tempos de Coronavírus, mas o machismo está presente na quarentena das mais variadas famílias porque ele antecede essa situação de pandemia.
    Quando falamos de mulheres que são atravessadas pela violência doméstica, acabamos por nos esquecer de que a classe Mulher também tem sua diversidade. Nossas políticas são pensadas para o atendimento de mulheres ouvintes, excluindo uma parcela bastante significativa da população. O telefone lilás (Disque 180), por exemplo, é um recurso para denunciar violência contra a mulher, mas que ao mesmo tempo não pode ser utilizado por mulheres surdas. Talvez neste período de quarentena em que pelo fato das mulheres estarem isoladas com seus agressores, causando uma maior dificuldade de realizar denúncias por telefone, pensemos em outras políticas para atender a todas as mulheres surdas e ouvintes.

     A decisão de ir até uma delegacia registrar uma ocorrência não costuma ser fácil, afinal alguns fatores costumam impedir, como por exemplo: Ameaça a sua vida e a vida de seus filhos ou parentes, vergonha, medo de serem desacreditadas e culpabilizadas, medo de enfrentar o processo e “não dar em nada” e atualmente, medo do vírus entre vários outros motivos. Agora, imaginemos que além destes há ainda um outro fator: Não há alguém que fale a sua língua para lhe atender. Esta é a realidade das mulheres surdas no nosso país.
    Quando uma mulher surda decide ir até uma delegacia, precisa se preocupar em levar alguém que possa a ajudar a realizar a comunicação, pois as delegacias brasileiras não oferecem profissionais tradutores e intérpretes de Libras. Cabe a mulher surda ter uma preocupação a mais que qualquer outra mulher ouvinte, ela precisa buscar, sozinha, uma maneira de garantir que será vista.
Geralmente, as mulheres em situação de violência perdem seus laços familiares e sociais.      Os homens violentos e ciumentos costumam controlar os movimentos da parceira. Por isso, em muitos casos as relações com família e amigos ficam restritas, ocultando a situação. Nessa lógica, uma mulher distante da sua rede de apoio é uma mulher ainda mais vulnerável. No caso da mulher surda, ela pode ficar impossibilitada de solicitar a alguém de confiança para possibilitar a comunicação na delegacia, sendo essa mais uma barreira que impeça a mulher surda de denunciar, já que ela “depende” de uma terceira pessoa. A situação fica mais crítica com a pandemia, uma vez que o isolamento social, tão necessário para conter o vírus, pode também acabar por conter essas mulheres silenciadas em seus lares.

     As mulheres com deficiência são mais vulneráveis à violência doméstica quando comparadas com as mulheres ouvintes que não tem deficiência. Em 2019, o tema foi debatido na CPI do Feminicídio do Rio de Janeiro. A estimativa apresentada foi de que as
mulheres com deficiência tenham 4 vezes mais chance de sofrer algum tipo de violência
quando comparado com as mulheres sem deficiência. Uma dificuldade analisada nesta
atividade também foi a da ausência de dados nos registros, o que dificulta o levantamento
de dados estatísticos. É importantíssimo que os registros policiais contenham a informação
de que a mulher possui deficiência ou não. E neste caso, é importante acrescentar a surdez como uma outra característica, já que há uma diferença bastante significativa entre uma mulher com deficiência e uma mulher surda. Quanto a isso, Perlin e Vilhalva fazem a
seguinte afirmação: A mulher surda é comparada à mulher deficiente. Muitas vezes a sociedade continua com a educação colonialista sobre a mulher surda sem noção de sua
diferença. No momento em que somos chamadas de deficientes, somos comparadas às mulheres ouvintes. Essa é uma representação que assume aspectos de discriminação, de nossa língua e cultura, pelo completo desconhecimento do valor linguístico que a língua de sinais possui e também pelo completo desconhecimento da significação do ser mulher surda, ou seja, ser uma pessoa que entende o mundo pelos olhos e necessita de informação em sua língua visual (Perlin e Vilhalva, 2016, p.6)

    As medidas de identificação em relação a ter ou não alguma deficiência, se presentes nos registros policiais, são vitais para que possamos avançar em relação a existência de dados estatísticos, para além disso é importante que as mulheres surdas tenham um registro a par, pois a partir disso poderemos mapear as regiões onde há mais necessidade da presença de tradutores e intérpretes de Libras. Afinal, essa é uma necessidade específica da comunidade surda e deve ser pensada e construída mesmo em tempos de Coronavírus, onde estratégias precisam ser tomadas para que essas mulheres tenham condições e a garantia de realizar uma denúncia com segurança.

    É urgente que um recorte seja feito em relação às mulheres surdas para que possamos avançar em políticas públicas para todas. Afinal, a barreira linguística é o principal fator que impede mulheres surdas de denunciar violência doméstica, e em tempos de pandemia isso precisa ser considerado antes que traumas e danos irreparáveis cheguem a acometer mais mulheres. Sabemos que temos um inimigo invisível nas ruas, famoso Covid-19, no entanto, dentro dos lares de milhares de mulheres em todo o país há um inimigo visível, embora esteja passando quase que imperceptível no meio dessa crise. É necessário que ambos sejam contidos.


Referências:
AGÊNCIA BRASIL. Mulheres com deficiência têm mais dificuldade para denunciar violência.
07 de ago. de 2019. Disponível em: <​ https://agenciabrasil.ebc.com.br/diitos-humanos/not
icia/2019-08/mulheres-com-deficiencia-tem-mais-dificuldade-para-denunciar​ > Acesso em:
16 de abr. de 2020.

BBC NEWS. 11 Motivos que levam as mulher a deixar de denunciar casos de assédio e
violência sexual. 13 de out. de 2017. Disponível em: <​ https://www.bbc.co m/portuguese/
brasil- 41617235​ > Aceso em: 16 de abr. de 2020.

CNJ. Processos de violência doméstica e feminicídio crescem em 2019. 09 de mar. de 2020.
Disponível em: ​ https://www.cnj.jus.br/processos-de-violencia-domestica-e- feminicidio-cr
escem-em-2019/​ Acesso em: 15 de abr. de 2020.

COSTA, Giulia. Mulheres surdas não conseguem denunciar violência doméstica por falta de
intérpretes. O Globo. 14 de abr. de 2019. Disponível em: <​ https://oglobo.glo
bo.com/sociedade/celina/mulheres-surdas-nao-conseguem-denunciar-violencia-domestica-por-falta-de-interpretes-23597017​ > Acesso em: 16 de abr. de 2020.

FOLHA DE S.PAULO. Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante quarentena
por Coronavírus. São Paulo. 15 de abr. de 2020. Disponível em:<​ https://www1.folha.uol.com
.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarente
na-por-coronavirus.shtml​ > Acesso em: 15 de abr. de 2020.

ISTOÉ. Justiça registrou 563 mil novos casos de violência doméstica em 2019. 11 de mar. de
2020. Disponível em: <​ https://istoe.com.br/​ justica-registrou-563-mil-novos-casos-de-violenc
ia-domestica-em-2019/> Acesso em: 15 de abr. de 2020.

OMS. Preguntas y respuestas sobre la enfermedad por coronavirus (COVID-19). c2019.
Disponível em: < ​ https://www.who.int/es/emergencies/diseases/novel-coro navirus-2019
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PERLIN, Gládis e VILHAVA, Schirley. Mulher surda: elementos ao empoderamento na política
afirmativa. INES - Revista Forum. Rio de Janeiro. n. 33. jan-jun 2016. Disponível em: ​ http://w
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de 2020.

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