quarta-feira, 6 de maio de 2020

Do iate ao veleiro, do bote a remo a boia de borracha: definitivamente não estamos todos no mesmo barco...

Sérgio Pires é Licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS, atualmente bacharelando em Ciências Sociais pela UFRGS, com ênfase em Antropologia.












Do iate ao veleiro, do bote a remo a boia de borracha: definitivamente não estamos todos no mesmo barco...

O ano de 2020 ficará marcado na história da humanidade, pois estamos vivendo uma pandemia sem precedentes na contemporaneidade, mostrando nossa imensa fragilidade enquanto seres humanos, ao passo que contamos todas as vítimas do covid-19, dos mais diversos países e etnias. Contudo, não pretendemos abordar neste texto a pandemia sob o viés biológico, mas sim sob outro aspecto, que pode ser ainda mais cruel e doloroso: o social.


Ainda que a natureza nos iguale enquanto espécie, a humanidade está sim divida, e esta pandemia, se por um lado nos mostra como somos iguais, fisiologicamente falando, por outro lado - o social - existem verdadeiros abismos entre as pessoas, alguns menores, transponíveis, outros simplesmente gigantescos, ou seja, sempre existiu o distanciamento social, só que agora ele se mostra físico, geográfico.

Nesse sentido quero abordar esse tema sob duas perspectivas: a do trabalho e a educacional, pois acredito ser nestes que se mostram de modo muito claro as imensas diferenças sociais em nosso país.

Assistindo um telejornal, logo no início do distanciamento social, duas matérias me chamaram muito a atenção: uma delas retratava um casal, classe média alta, realizando o chamado “home office”, cada um em seus laptops, em seu apartamento confortável em um bairro nobre. Suas crianças, dois meninos,  dividiam seu tempo entre vídeo games e provedores de streaming com as vídeo-aulas, bem como com a realização das tarefas enviadas por suas escolas.

O casal relatava sua experiência com essa nova realidade, de conviver diariamente com seus filhos, ajudar nas tarefas escolares, e dar conta da alimentação e das tarefas domésticas, uma vez que haviam dispensados os serviços da sua diarista em decorrência da pandemia, ainda que dispusessem de todos os serviços de delivery, o que facilitava e muito as novas rotinas familiares...

A outra matéria abordava a situação de uma diarista, que teve todas as suas faxinas canceladas em virtude da pandemia, e que estava em uma situação bem difícil, uma vez que era sozinha e precisava do trabalho para sustentar seus cinco filhos, todos alunos da rede pública de educação.

Aqui vemos duas realidades bem distintas, duas famílias tendo que lidar com os desafios provenientes da pandemia, porém, existem diferenças muito grandes entre um caso e outro, diferenças sociais gigantescas, que não foram criadas nesse período, mas sim foram escancaradas, de maneira que nunca se viu antes, mostrando os efeitos de tantos anos de injustiça social e má distribuição de renda que assola esse país desde os tempos coloniais.

Uma vez que são detectadas essas disparidades entre os estratos sociais, qual a maneira diminuir, ainda que pouco, a distância entre os estamentos? Através da criação de políticas públicas que atendam essas camadas da população...ao menos é o que se espera de todos os governos...especialmente nas políticas de distribuição de renda e acesso a educação de qualidade, pública e gratuita.

O que se tem visto durante esta pandemia no Brasil, é o retrato dessa desigualdade, que se faz visível cada vez mais, especialmente quando, ao fazermos um recorte desses dois itens, trabalho e educação, percebemos que, entre as classes mais abastadas, se mantem certo grau de “normalidade”, tanto no que se diz respeito à garantia de educação de seus filhos, uma vez que existe todo um aparato que assegura aos alunos da rede particular aulas e vídeo aulas, que por sinal são produzidas através de muito suor dos professores, que mesmo em casa perfazem jornadas de 12 horas de trabalho ou mais, para poderem dar conta de todas as atividades que a escola exige, como também da realização das atividades profissionais, através do “home office”, em atividades que comportam essa modalidade de trabalho.

Mas e quanto às camadas mais necessitadas da população? O que lhes resta? Como conseguir o dinheiro necessário para o sustento das suas famílias? E nesse caso vale lembrar o tanto de esforço que foi feito para se “flexibilizar” a CLT, praticamente acabando com o pouco de segurança que o trabalhador brasileiro ainda dispunha.

E quanto as suas crianças? As escolas da rede pública estadual têm disponibilizado atividades via internet para os alunos...ora, o leitor pode pensar: “Que ótimo! Boa iniciativa.”, e de fato é, mas e quanto aos alunos que não tem internet em suas casas? E novamente o leitor pode perguntar: “Mas e quem não tem internet em casa nos dias de hoje?”, ao que respondo: muitas pessoas não tem...inclusive não tem nem rede elétrica e água encanada...e muitas dessas crianças tem na merenda escolar sua principal refeição do dia...ou seja, o número de crianças que de fato apresentarão um bom rendimento com essas atividades via internet será bem baixo, uma vez que, além de todas as questões referentes ao acesso, precisamos levar em conta algo bem importante e que faz toda a diferença, tanto em um cenário ideal, quanto em tempos extraordinários : o capital cultural dos pais, que terão a missão de ajudar seus filhos com as tarefas, aqueles que puderem ter acesso, claro.

Para essas famílias, o espaço de convivência é bem restrito, normalmente são casas pequenas, de um ou dois cômodos, o que não possibilita um isolamento eficiente em caso de contágio de um membro da família...normalmente o espaço da rua se confunde com o espaço doméstico, o que é muito comum em comunidades carentes, o que pode colaborar para a disseminação do vírus, sem contar na disposição de água e sabão, álcool gel e máscaras, outro desafio para essa parte da população.

Diante desse quadro, muito aumenta a importância da elaboração de políticas públicas voltadas para essa camada da população. Ainda que muitas ongs estão se esforçando para ajudar, o Estado não pode de maneira alguma se abster de seu papel, e de fato trabalhar em prol daqueles que mais necessitam.

Porém, o que se tem observado no cenário político nacional, nos mostra um quadro desalentador, quase que como em uma mistura de um conto de Swift e o um roteiro B do filme “O Ditador”, retratando um monarca presunçoso e egocêntrico, que manda “cortar a cabeça” de quem se opõe a ele, mesmo que isso coloque em risco, tanto a população quanto a Segurança Nacional.

Além das ações de âmbito mais restrito aos estados feitos pelos governadores, o Congresso, ainda que com intenções duvidosas, conseguiu aumentar o auxílio para os autônomos e informais, que são muito numerosos, especialmente depois da onda de “empreendedorismo” que o país adotou. Mas ainda assim, o que observamos são filas imensas, longas esperas para a resposta nos aplicativos...interessante que o mesmo não aconteceu quando a “ajuda” destinada aos bancos foi aprovada, mesmo sendo um vultuoso valor foi concedido rapidamente...repentinamente lembrei de um ditado muito popular: quem pode mais, chora menos...

De todas as lições que poderemos aprender - ou não - com a pandemia causada pelo covid-19, acredito que a maior de todas é que não, definitivamente não estamos no mesmo barco...alguns estão em grandes transatlânticos bebendo champanhe...outros estão em luxuosos iates abrindo um vinho...mas a grande maioria de nosso povo está a deriva, quase como Rose e Jack em Titanic, segurando em um pedaço de madeira, torcendo para que algum bote de resgate chegue logo...e os que nem isso tem? Nada, nada, nada... 

4 comentários:

  1. Uma importante e recorrente reflexão que trazes nesse texto, Sérgio. Nos ajuda a entender porque para alguns a pandemia não passa de uma gripezinha, ou um incomodo, enquanto que para muitos pode representar nada menos do que sofrimento e morte. Tristes tempos em que estamos.

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  2. Bela reflexão. Enquanto o presidente sem diz ser so uma gripezinha as pessoas estão morrendo

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  3. Reflexão imperiosa com uma abordagem muito concreta com a realidade que vivemos.

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  4. Para nós q vivemos essa realidade diariamente o termo gripesinha escancarou o distanciamento entre os q dependem de um leito no SUS e os q tem plano de saúde, UTI, medicamentos, médicos e equipamentos de última geração, isso pra não falar de moradia, meio de transporte, saneamento básico mínimo q seja, nem vou citar internet, telefone celular e aplicativos com plataformas digitais, estamos muito longe disso. A distância entre nós e ELES, os da gripesinha é imensa, e os que decidem quem pode mudar essa realidade estão engessados, paranóicos hipnotizados pela mídia e a falça sensação de q pertencem a esse mundo que vivem os gripadinhos.

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