quinta-feira, 12 de março de 2020

Gostaria de saber quando a esquerda brasileira vai voltar a ser esquerda.



Jefferson Meister Pires é Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS, funcionário público e pesquisador.





Gostaria de saber quando a esquerda brasileira vai voltar a ser esquerda.

                    A cada semana que passa não consigo parar de pensar em qual será o próximo vexame que vamos passar, sejam os vexames reiterados por parte deste presidente e sua equipe, vexames estes que já estão se tornando parte do nosso dia-a-dia, naturalizados, previstos; Ou sejam os vexames sazonais reiterados por parte de nossos auto proclamados “representantes do pensamento de esquerda”.
                       O atual vexame está diretamente relacionado com a mais recente polêmica do embate Direita Vil X Esquerda Interesseira e está assentada na importante reportagem estrelada pelo Dr. Drauzio Varela no programa Fantástico da TV Globo¹ que foi veiculado no dia 08/03/2020, mais conhecido como último domingo.
                Antes de entrar no tema deste artigo preciso desabafar, pois não consigo entender como algumas pessoas ainda se espantam com as reações da direita brasileira acerca de problemas e pautas as quais sempre consideraram inúteis, eles estão cada vez mais inflados com as redes sociais e com o apoio popular do qual nem sabem porque recebem. Nossa direita sempre foi assim, sempre viveu de distorções, retirada de contextos, dados falsos e imprecisos,etc. A diferença é que agora com o advento das redes sociais ficou muito mais fácil ser estúpido (em todos os sentidos da palavra), só quem nunca esteve no debate é que se espanta com o nível baixíssimo do quadro “intelectual” da direita no Brasil.
                É claro, óbvio, natural, batido, comum que os interlocutores representantes de uma elite econômica irresponsável vão utilizar quaisquer dissonâncias no discurso “da esquerda” com os anseios do cidadão “comum” para cada vez mais nos jogar no abismo do obscurantismo. Não é a toa que nas últimas eleições fomo surrados como não se via há vinte e tantos anos, não é a toa que as pesquisas de opinião² refletem cada vez mais posições contrárias ao que nós da esquerda acreditamos serem os caminhos corretos, parece que estamos marchando contra o povão, ao invés de estamos ao lado ou no mesmo barco.
           Custo a acreditar que algumas de nossas vozes mais conhecidas, como por exemplo o youtuber filósofo Henri Bugalho³ e o Jornalista/Blogueiro/Colunista Leonardo Sakamoto4, entre outros, não conseguem entender questões básicas como a diferença entre preconceito e repulsa. Para entendermos esta crítica temos que entender primeiro o conteúdo da matéria global, onde a transexual Suzy, abraçada por Dráuzio, cometeu um crime hediondo. Alguns perguntam: E Daí? Eu respondo: E daí que esse crime o qual ela cometeu atinge os mais profundos medos, dores, sentimentos de nossa população de majoritária moral cristã, ou judaico/cristã como diriam os mais cultos, este crime gera uma repulsa quase incontrolável na maioria das pessoas. Suzy não roubou um mercado, não roubou um carro, não agrediu uma senhorinha na saída da igreja, Suzy violentou sexualmente e depois asfixiou de forma brutal o menino que se chamava Fábio dos Santos, com então nove anos de idade, sem a menor chance de defesa.
                 O problema para nós que nos sentimos esquerda nunca foi e nunca será o abraço de Drauzio em Suzi, até mesmo o pior criminoso que possamos imaginar pode receber um abraço como uma forma de mostrar que neste mundo há compaixão, embora Suzy não a tenha sentido no momento que praticou o crime. O problema para nós enquanto esquerda surge quando tentamos afastar o criminoso do fato cometido, isso nunca poderá ser feito, este fato vai andar ao lado de Suzy mesmo depois de cumprida a pena, pois o ato de matar alguém é indeletável (acho que essa palavra não existe), é impossível de ser esquecido.

              Podemos perdoar sim, podemos abraçar sim, mas jamais podemos querer esconder ou mascarar o que foi feito. A bendita reportagem tratava sobre o abandono e dificuldades extremas que os presos trans sofrem nos presídios masculinos e machistas, todas as outras trans foram abraçadas por Dráuzio, não vi ninguém reclamando disto. A Transexual Suzy não recebe visitas há oito anos porque cometeu um crime bárbaro e cruel e não somente porque é transexual, embora seja lógico dizer que o fato de ser transexual também tem peso nesse abandono, a reportagem poderia simplesmente ter dito que Suzy cometeu um crime bárbaro, cruel e devido a este ato hediondo E ao fato de ser trans, ou EM CONJUNTO com o fato de ser trans, não recebe visitas nem cartas há oito anos.

                     Karl Popper5 já nos ensinou há décadas que apenas baseados na observação jamais podemos afirmar que todos os cisnes são brancos, jamais podemos clamar como conhecimento científico aquilo que não considerar todos os fatos envolvidos no evento, tanto os fatos concretos assim como os abstratos possíveis de serem imaginados. Enfim, o que este episódio mostra de mais importante para nossa reflexão enquanto pensamento de esquerda é se nossas posições ideológicas são mais importantes que as ações, sejam elas prováveis ou improváveis, concretas ou abstratas, dados, estatísticos ou imaginativos...
                      Porque uma grande parte de nós se revolta veementemente quando um clube de futebol contrata o goleiro Bruno6, condenado por um ato brutal e torpe, mas não se revolta quando uma reportagem omite fatos e tenta passar uma idéia no mínimo equivocada da situação de outra pessoa que cometeu um crime brutal e torpe? Será que um dos crimes foi mais brutal que o outro? Será que nossa empatia é seletiva? Será que as pautas identitárias são mais importantes do que qualquer outra coisa? Suzy ao ser trans não é mais uma assassina confessa?
                       Em uma época não tão distante, nossa esquerda berrava contra criminosos de todos os tipos, contra impunidade, contra a Rede Globo, contra uma série de coisas que parecem hoje ser menos importantes do que conseguir espaço dentro do movimento X ou Y, ou aquele cargo importante na prefeitura. Eu vi uma esquerda que fazia reuniões à noite, em garagens e peças sem reboco, que tinha a fala muito longe da norma culta, que não viajava à Paris, que não tratava povo como imbecil e a si mesmos como guardiões da luz do conhecimento.
                       A esquerda em que eu iniciei andava de busão e trem, morava em periferia ou pelo menos ia nas festas da periferia, gostava de interior, tinha nojo de Estados Unidos e Europa, sentia repulsa pelos poderosos. A esquerda que me formou não usava terno, não comprava no Carrefour e nem comia sushi (confesso que sushi eu gosto, embora coma muito raramente), a esquerda que andava de braços dados com o povo não pisava em símbolos religiosos, mesmo sendo ateus, não contratava amigos com dinheiro público, não fazia promessa de cargos para conseguir apoio (aliás, denunciava isso) não tratava como criaturas inferiores aqueles que ocupavam posições inferiores.
                     Por fim não posso deixar de lembrar que algum escritor famoso certa vez disse que o proletário é (...) “uma esfera que possui um caráter universal por seu sofrimento universal e que não reivindica nenhum direito particular, uma vez que nenhuma injustiça em particular, mas sim a injustiça de modo geral, lhe é perpetrada. só se vê como pessoa quando primeiro se vê como proletário”...7
                   No meu entendimento trata-se de uma questão de pertencimento (ou não pertencimento), de falta de empatia. Quando passamos a valorizar diplomas mais do que conhecimento, quando tratamos alguns trabalhadores como nossos inimigos e outros como amigos, quando passamos a defender a idéia absurda de que pautas identitárias estão descoladas de outras pautas ou da principal pauta de todas, que sempre vai estar no fundo das questões, a desigualdade de oportunidades... 

                    Estamos trabalhando para nos afastar das pessoas e nos aproximar das idéias, estamos próximos dos discursos e longe do entendimento e da humildade de ouvir antes de falar. Dráuzio não fez nada errado ao abraçar Suzy, mas nós fizemos ao não criticar a Rede Globo por sua forma de apresentar a matéria. Nós acabamos dando armas para que uma direita desonesta e preguiçosa, “nós” damos de bandeja “nossos” equívocos pra que eles caiam de pau em cima e nos coloquem todos no mesmo angu, todos como anti-povo.
Repito: gostaria de saber se algum dia a esquerda brasileira voltará a ser esquerda.



Referências:
5 POPPER, Karl Rai. A lógica da pesquisa científica. 15. ed São Paulo: Cultrix, 2011.

7 MARX, Karl. (1843). A contribution to the critique of Hegel's Philosophy of Right: Introduction. In: Marx & Engels Collected Works (vol. 3).

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