Priscila Klein da Silva
Professora da Rede Municipal de Alvorada
Pedagoga – Orientadora Educacional / ULBRA
Especialista em Educação de Jovens e Adultos e Educação de Privados de Liberdade / UFRGS
Mestra em Educação / PUCRS
As
manchas escarlates no corpo, especialmente aquelas no rosto da
vítima, representavam a exclusão que a privava da assistência e da
compaixão de seus semelhantes. [...] Apesar disso, o príncipe
Próspero se sentia feliz, intrépido e sagaz (POE, 2018, p.15).
O
trecho citado faz parte do conto de terror de Edgard Allan Poe,
intitulado “A Máscara da Morte Rubra”, escrito em 1842. Pretendo
aqui traçar um paralelo entre o conto anunciado e o contexto atual
em que estamos vivenciando, com intuito de que possamos compreender
algumas das consequências quando não encaramos a História e todas
as suas ruínas (BENJAMIN, 2012).
Desde
março, aqui no Brasil, temos nos deparado com uma Pandemia de
proporção mundial e alto poder de contágio: a Covid-19. Não me
aterei em explicá-la cientificamente, pois acredito que há muitas
informações nos meios de comunicação, nacional e internacional,
que mensuram como este vírus se comporta em nosso organismo, e/ou
quais as precauções que devemos ter para não contrair esta doença
(embora nem todos possuam condições para tal prevenção).
No
conto de Allan Poe, uma peste também dizimava o país, e nenhuma
como ela havia sido tão fatal. Era chamada de “Morte Rubra”,
porque o “sangue representava a sua imagem e sua marca” (POE,
2018, p.15). Os sintomas eram caracterizados por dores agudas,
tonturas, sangramento pelos poros, seguidos de deterioração (POE,
2018). No país, pouco foi feito para minimizar a peste que o
assolava. No reino do príncipe Próspero não foi muito diferente.
Quando
a população de seus domínios havia se reduzido à metade, ele
reuniu mil amigos saudáveis e festivos, dentre cavalheiros e damas
de sua corte, e com eles se recolheu em uma de suas abadias
acasteladas (POE, 2018. p.15).
Assim
como no reino do príncipe Próspero, desde que tivemos que
reorganizar nossos modos de vida em razão da pandemia, presenciamos
situações em que alguns que possuem certos privilégios, protegem
somente aqueles que fazem parte de seu círculo. Mas, o que tem me
intrigado, de modo a tirar meu sono em algumas circunstâncias, é
como este mesmo comportamento opera em nós, classe trabalhadora.
Chama-me atenção como este vírus tem agido em nosso emocional.
Como a pandemia tem influenciado em nossa ética, em nossa noção de
coletividade, em nossa capacidade de ressignificar modos de vida (ou
em conservá-los).
No
reino do príncipe Próspero, mais precisamente na abadia acastelada
em que ele e seus convidados estavam confinados de tudo, inclusive da
realidade, vivia-se num mundo paralelo, com muitos atrativos
artísticos, musicais e tudo o mais que pudesse manter todos
entretidos, para que o real não ocupasse suas memórias.
Walter
Benjamin nos esclarece que “a verdadeira imagem do passado passa
por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como
imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu
reconhecimento” (2012, p.07).
Nesse
sentido, assim como no reino do príncipe Próspero, também vivemos
um momento negacionista em relação a pandemia, onde uma parte da
população faz questão de não tomar os cuidados necessários para
evitar a contaminação pela covid-19. Prefere “viver a vida”, se
reunir com familiares e amigos, não usar máscaras em nenhuma
hipótese, ir a praia normalmente. Assim como o grande baile de
máscaras organizado no reino de Próspero, onde todos os convidados,
presos em seus delírios de superioridade, pensavam que estariam a
salvo da Morte Rubra.
Mas,
não são somente os negacionistas que têm este comportamento,
muitas vezes incrédulo, outras vezes irresponsável. Parte da
população, esta que se manifesta nas redes sociais, preocupada com
a pandemia e com o comportamento das outras pessoas, frequentemente
também não toma todos os cuidados necessários para proteger-se e
proteger os seus. Há uma necessidade de manter aquilo que era
cotidiano. Nas pequenas coisas, como fazer as compras no mercado
(“ninguém compra o tomate do jeito que eu gosto”).
Percebo
que, por um tempo, um véu encobriu o conservadorismo que habita em
algumas pessoas. Com uma proporção micro, mas com significação
semelhante ao conceito, conservadorismo aqui se refere ao fato de
manter comportamentos e crenças que, de alguma forma, a situação
atual nos mostra que há necessidade de desvendar. São valores que
precisam ser repensados, para a preservação da vida humana. Mas há
resistência, mesmo daqueles que se intitulam progressistas, ou que
possuem uma visão mais à esquerda.
O
baile de máscaras que ocorreu no reino de Próspero foi o maior que
já aconteceu no local. Foi pensado com todo o cuidado para que não
houvesse nenhuma tentativa de invasão de fora do palácio, em razão
do risco de contágio. Edgard Allan Poe foi magistral na riqueza de
detalhes sobre a festa e sobre o palácio. Tudo transcorria bem,
todos se divertiam, até que ao soar as doze badaladas do relógio,
surge um ser misterioso, mascarado. “A figura era alta e
esquelética e estava coberta da cabeça aos pés com uma vestimenta
mortuária” (POE, 2018, p.18). O príncipe Próspero, mesmo
apresentando receio quanto a esta criatura, não podia deixar
transparecer aos seus amigos e por isso, partiu para cima do
estranho. O mascarado misterioso acabou com a vida de todos no
palácio. “Agora a presença da Morte Rubra era reconhecida [...] E
a escuridão, a decadência e a Morte Rubra reinaram com total
domínio” (POE, 2018, p.19).
E
quanto a nós, em 2020 d.C, será que conseguiremos encarar a
história de frente, reconhecendo-a e “escovando-a a contrapelo”
(BENJAMIN, 2012), superando comportamentos que só mantém o status
quo
e buscando outro modelo de sociedade? Ou deixaremos a Morte Rubra do
progresso nos arrastar ladeira abaixo, assim como fez no reino de
Próspero?
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN,
Walter. O
anjo da História.
Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2012.
POE,
Edgard Allan. A
máscara da Morte Rubra.
Tradução de Ana Karina Borges Braun.
Caderno
de Tradução, Porto Alegre, n.42 jan/jun, 2018.