sábado, 6 de março de 2021

O Navio sem comandante perdido em águas turvas

 

Daniel da Luz Machado

Bacharel em Administração  -  Faculdade São Judas Tadeu

Bacharelando em Ciências Sociais - UFRGS


O caos sociopolítico em que estamos inseridos como Nação, ultrapassa qualquer expectativa criativa de um escritor de distopias.

Mergulhamos em um abismo que parece não ter mais fim. Economia claudicante, absurdamente concentrada em pouquíssimas mãos, elementos de teocracia associados a um extremismo de direita que coraria os principais déspotas da história universal, uma parte considerável de uma população insana que exala ódio por todos os poros e se orgulha de cultuar sua burrice e ignorância e um vírus fatal que dilacera vidas ao redor do mundo destruindo famílias, sonhos e que poda de forma abrupta o que estaria por vir.

No restante do mundo, mesmo que algumas nuances capitalistas insistam em valorizar o ter e não o ser humano, os líderes dessas nações ao menos tentam conter a devastação e procuram agir como estadistas.

Conosco a bizarrice nos explicita uma espécie de “Nero” que quer colocar fogo em tudo e que lunaticamente recebe apoio e ovações aos seus desequilíbrios psicossomáticos que de forma bastante incisiva os faz corresponsável por cada brasileiro que perdeu a batalha para o COVID-19.

Ao assumir uma postura negacionista, ao dar declarações sobre temas que não tem o menor conhecimento técnico, ao provocar aglomerações, ao demonstrar zero empatia com os que enterraram os seus familiares, ou que só estão esperando a comunicação hospitalar do óbito de seu familiar, a figura nefasta que comanda o poder executivo do nosso País me transmite uma figura metafórica de que estamos em um imenso navio que adentrou em águas perigosas e violentas e que ao procurarmos a figura do comandante da embarcação, nos deparamos com o vazio provocado pela inépcia daquele que deveria orientar os marinheiros e tranquilizar tripulação civil de que estamos em uma situação delicada, mas que não serão medidos esforços para contornar os problemas, ou seja precisamos de transparência, mas acima de tudo palavras de alento.

Ao contrário disso o nosso presidente dança na cara da sociedade, exponencializa o mantra da “corrupção” que agora a classe média inerte parece não querer mais recitar ao ver fortunas geradas por uma simples loja de chocolates, ou dos esquemas de rachadinhas salariais. A música eternizada por Tim Maia se atualiza e cristaliza na mente e ações dos “homens de bem” . “Vale tudo, vale tudo, (mas ainda continua não valendo dançar homem com homem e nem mulher com mulher) pois isso é um atentado a família tradicional brasileira .

Enfim o (Des)governo brasileiro nos joga nesse imenso navio que está prestes a ser engolido por águas violentas. O Comandante? Ah! Esse já está se preparando para tomar os botes para si, sua família e uma parte de incautos puxa sacos que o cercam. E para impedir que os sóbrios tomem o comando e salve a todos, parte da tripulação civil formada de gado puro não medirá esforços para obstaculizar.

domingo, 20 de dezembro de 2020

A importância dos atos antirracistas para derrubar o governo Bolsonaro-Mourão

 

 

Rafael Freitas

Professor. Militante do PCB.

 







Rafael Melo

Trabalhador da saúde. Sindicalista. Militante do PCB.








         O ano de 2020 encerra com um conjunto de mobilizações de caráter antirracista, que foram perpetradas mais uma vez, por trágicas e cruéis expressões do racismo estrutural que solidifica nossa sociedade de classes. Em Porto Alegre, diversas lutas em separado, movimentam a política local.

No dia 19 de novembro, um dia antes da data da Consciência Negra, João Alberto é morto, após ser espancado pelos seguranças do Carrefour, chamados MAGNO BRAZ BORGES e GIOVANE GASPAR DA SILVA- também da Brigada Militar. Após esse brutal assassinato, no dia seguinte teve manifestação em frente ao Carrefour onde aconteceu o fato, no bairro Passo D’Areia. E no dia 23, em frente o Carrefour da Bento Gonçalves. Nos dois atos, a Brigada Militar reprimiu os manifestantes, que revidaram com pedras e barricadas.

Na tarde do dia 8 de dezembro, a Brigada Militar invade sem mandato a residência da Promotora Legal Popular Jane Beatriz Silva Nunes, que foi morta em seguida pelos policiais armados e racistas. No seu local de moradia, espontaneamente os moradores da Vila Cruzeiro, usam a avenida Tronco para se manifestarem, e mais uma vez a Brigada Militar reprime os manifestantes, que revidam, queimando objetos nas duas vias da avenida e um carro. Dias mais tarde, há nova manifestação, dessa vez pacífica, na esquina entre as ruas Caixa Econômica e Cruzeiro do Sul, ainda assim com forte aparato polícia presente.

       Essas mobilizações em especial, aliadas à um conjunto de mobilizações populares que muitas vezes passam despercebidas, podem ter um sentido muito importante na correlação de forças, contra o governo Bolsonaro-Mourão.

      Primeiro, por seu caráter agregador, englobando em um cenário de descrença com o sistema político-burguês, a necessidade de ação do povo e de luta de classes. Dentro de um cenário político extremamente favorável ao avanço do conservadorismo, e em alguma medida, de um fascismo rejuvenescido, de nosso tempo, essas mobilizações têm um poder importante de mobilização. A combatividade política do povo negro sempre esteve ativa e necessária, mas em um contexto como o nosso, acabam servindo como estopim de uma explosão que acaba desacomodando até setores médio-progressistas, pela necessidade de reação popular imediata.

     Nesse fluxo, grandes mobilizações populares, além de serem táticas na luta de posição contra as opressões, acabam chamando atenção para uma luta mais imediata, distante da burocracia político-eleitoral e portanto, mais acessível à população. O conflito social fica em nossa frente, em nossas mãos.

     Também, precisamos compreender que pautas como o racismo, bate taticamente com força em um governo como o de Bolsonaro-Mourão. Mexem em microestruturas sociais de reprodução de poder, e quando massivamente organizadas, podem atrair forte reação popular. Podem inclusive reativar a necessidade de luta por outras pautas mais gerais que atingem toda a classe trabalhadora.

      Sabemos o quanto por vezes, faltam direção única e organização em atos de massas como esse. Mas esse quase-espontaneísmo inicial, serve de ingrediente atrativo para massificação. Por isso, nossa tarefa é colocar força nas mobilizações populares- com todos os cuidados sanitários devido a pandemia do COVID-19. A agenda é essa! Muito mais que belos acordos de frentes mirabolantes, focadas em eleições, precisamos agora investir forças na construção de um “caldeirão de lutas populares”. Em muitos países deu certo a estratégia de massificação das lutas. Acreditamos nessa linha. O governo reúne contradições, desestabilidade e incompetências o suficiente, para que a mobilização popular ao menos tencione sua base, coisa que “tuitaços”, memes e palavras de ordem como “eu avisei”, não vêm conseguindo fazer.



        A saída é o poder popular!






 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Precisamos falar sobre espaços vazios

 


Daniel da Luz Machado - Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade São Judas Tadeu e Bacharelando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.




    Vivemos um contexto político e social muito preocupante em nosso país. Não obstante uma economia balizada por uma desigualdade assustadora, estamos lidando com uma pandemia de proporções alarmantes no que tange a saúde pública e também com reflexos nefastos para população “na própria carne” e “no próprio bolso”, enfim um cenário perfeito para proliferação de discursos inconsistentes e vociferações vazias que no final ajudam a perpetuar o status quo que já era insalubre antes de sermos tombados pelo tsunami da covid – 19.

    Uma situação em especial eu gostaria de trazer para essa reflexão que dividirei com você leitor e que visualizo como uma das variáveis importantes para entender o vazio que convida o caos para bailar.

    No dia 04 de dezembro do corrente ano foi ao ar em suas plataformas digitais a primeira parte de um debate do Programa Ringue da PAN 85 com as participações de Guga Noblat, Kim Kataguiri , Fernando Holiday e o Professor Adriano Viaro, sendo o Professor Viaro um debatedor convidado representando um ponto de vista contrário ao do Fernando Holiday.

    O Professor Viaro é Mestre em História e um grande pesquisador das relações étnico-raciais, com especializações em sociologia, além de palestrante e Diretor de uma escola na cidade de São Leopoldo, enfim um educador em constante pesquisa e aprimoramento, que traz em sua argumentação a solidez por anos incansáveis de estudos. Do outro lado Fernando Holiday, o fruto político do vazio que proporciona o caos, com argumentações anacrônicas, inconsistentes e com uma densidade de castelo de areia construído perto do tradicional futebolzinho na praia.

    O Debate se deu com uma supremacia esperada por quem conhece o conteúdo do Professor Viaro face ao também esperado festival de inconsistências que Fernando Holiday certamente diria. Mas o que me causa bastante perplexidade são os comentários de algumas pessoas ligadas ao pensamento progressista ou de esquerda, que questionaram que o Professor não deveria “Ter dado voz e ibope” a um veículo de informação que saúda abertamente o establishment .

    Fico imaginando o quão nociva é a atitude de falar apenas com pares e os reflexos contundentes desse comportamento de caramujo que não sai da própria casca.

    Há poucos dias as eleições para prefeito aqui no estado do RS, para ficarmos na aldeia, trouxe vitórias de partidos conservadores , com histórico de governos jamais voltados para o bem estar da maioria da população que se aproveitam de discursos vazios de antipolítica , ou de medo de teorias comunistas (termo atualmente utilizado para definir tudo que não é de direita ou extrema direita) e parte da derrota dos campos mais progressistas, na minha opinião perpassam justamente por não encararem a realidade e acima de tudo por não ocuparem os espaços vazios.

    Fernando Holiday e Kim Kataguiri representam os oriundos do caos, representam o esvaziamento do discurso, a falácia do malabarismo retórico que não leva a lugar nenhum, representam o “velho” mal disfarçado de “novo” que construíram um capital social e político em cima da ausência do debate. Eles são malabaristas, mas quando contrapõem seus argumentos com quem seriamente estuda e se prepara e assume o papel de debater com eles sem se preocupar com o espaço e o momento, eles tremem, se anulam e mostram que parte do seu sucesso se deu pela falta de autocrítica e uma certa arrogância da esquerda e outros setores progressistas que se negam a discutir com eles.

    Os espaços estão ai. A direita está ocupando e se ferramentou bem antes da esquerda para isso. Ou avançamos e passamos a dividir esses espaços sem melindres e pompas, ou discursos vazios e muitas vezes desonestos intelectualmente como os do Holiday e do Kim se multiplicarão de tal forma que a mudança desse ciclo governamental distópico se prolongará por um período bem maior do que possamos aguentar.

  Façamos como o Professor Viaro que não se furtou do debate e não quis falar apenas aos seus pares, pois em tempo, somos minoria e se continuarmos apenas dentro da bolha, tenderemos a desaparecer.

Política e swing, o sentido é coletivo, a prática individual.

 

 

Jefferson Meister Pires é Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS, funcionário público e pesquisador.






     O pensamento binário domina como nunca a cena política brasileira, com demonstrações bizarras onde os movimentos dominantes tanto na situação (extrema direita, olavistas, etc.) quanto na oposição (esquerdas e alguns poucos gatos pingados no centro e direita) se alimentam do binarismo como forma de se perpetuar cada vez mais na disputa política em campos que seriam antagônicos, mas, quando observados mais atenciosamente em seus discursos e práticas, acabam por se mostrar muito mais próximos do que gostamos de admitir.

    Estamos falando claramente de grupos políticos que desejam ser “as elites” dentro da disputa político/cultural, porém, não se tratam necessariamente de elites econômicas e culturais, sendo muito mais coerente falar em grupos políticos fechados, quase impenetráveis e de pouco diálogo. Se comportam como figuras dominantes em um grande jogo, os donos da bola e do campinho ou os contestadores da rua de cima, se fecham em patotas que giram em uma dança interminável em torno do poder e de tudo aquilo que o poder oferece: cargos, dinheiro, prestígio, história, etc.

    Em recentes conversas com amigos seguidores de Bolsonaro, tentaram me convencer daquilo que já foram convencidos, que a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg se manifestou em evento esportivo contra o presidente por ser canalha e burra (segundo os diversos posts os quais fizeram questão de me apresentar como provas) por ser canalha e burra é de esquerda (lógico, esquerdistas são ou canalhas ou burros ou ambos), por ser de esquerda é comunista, por ser comunista é petista. Assim como, mais recentemente, julgam todos aqueles que se posicionaram a favor de Joe Biden na corrida presidencial norte-americana.

    Em recente conversa com amigos que militam no PT, expus meus motivos para não defender as candidaturas as quais esse partido estiver ligado, mais do que isto, expus a eles os motivos para desejar que seja obliterado nesta e em todas as próximas eleições, motivos os quais venho observando em mais de vinte anos como funcionário público e militante de esquerda (não sei se sou só burro ou só canalha, provavelmente ambos). As respostas de meus amigos petistas são praticamente todas no mesmo sentido: “Se você quer virar à direita faça isso logo e não fique arranjando desculpas nos outros”; Ou seja, para vários amigos e colegas que militam no ParTidão, se você não seguir um modelo de ser esquerda (de preferência não questionando os erros do PT) você é pelego, sendo pelego você é gado, sendo gado você é de direita (e logicamente sendo de direita ou você é fascista ou não se importa que outros exerçam o fascismo).

    Este problema matemático nos coloca em tristes posições onde a própria discussão política desaparece, ela estará sempre ligada a aspectos pessoais e individualistas, desejos e interesses particulares os quais são desligados de qualquer noção de bem comum. A posição política se tornou mais importante do que a própria política, engessada e imutável até que em algum momento sejamos traídos por aqueles para os quais demos nosso sangue e suor, somente neste momento é que somos capazes de questionar aquilo que até então era inquestionável.

    Como aquela moça que disse ter sentido ciúmes do marido após ter se satisfeito nos atos sexuais em um swing em que participava, ao ver que o marido continuou se divertindo com o casal convidado, os agentes políticos binários estão preocupados exclusivamente com suas satisfações pessoais, se tornam cegos e incapazes de entender que a pluralidade de posições, pensamentos e principalmente satisfações é o que tornam possíveis a presença do humanismo e do amor nas diferentes questões da vida contemporânea, especialmente nas instituições de Estado, criadas com o intuito de servir a todos os cidadãos, independente de posições individuais.

    A cena política nacional, no momento em que escrevo este pequeno texto, é mais parecida com uma enorme suruba alimentada por cargos e privilégios, onde os poucos convidados fazem tudo que estiver ao seu alcance para que seja um clube fechado e sem rotatividade, só participam da festa aqueles que beijaram a “mão” do porteiro. E do lado de fora do surubão tem uma galera que se une para falar mal de toda essa esbórnia, mas que até ontem eram os donos da festa e não vêem a hora de voltar para o lado de dentro do clube dos prazeres.

    Confesso, ainda atordoado, que está se tornando cada vez mais difícil reconhecer as diferenças entre estes grupos do que suas semelhanças. Para encerrar deixo uma reflexão lida no Blog Universa do portal UOL de onde destaco um pequeno trecho deste fabuloso texto escrito pela Psicóloga, Terapeuta Sexual e blogueira, Ana Canosa:

    “No final das contas, não ser uma unanimidade é, de fato, o grande desafio do ser humano. E há quem aposte que, na cultura pós-moderna, marcada pelo capitalismo de consumo, nos voltamos cada vez mais para uma necessidade infantil de satisfação plena. Se não reconhecermos essa nossa porção cada vez mais narcisista, estaremos fadados a cavar cada vez mais fundo o buraco do vazio existencial, em vez de fazermos as pazes e conviver com ele.”

    Nossa política partidária abraça os sentimentos individualistas e narcisistas, mais ainda, se alimenta desses sentimentos para criar as brechas necessárias onde os ideais desaparecem e são substituídos pelas necessidades, necessidades de quem?



domingo, 6 de setembro de 2020

A máscara que encobre a história e a Morte Rubra: Prenúncios distópicos de um futuro próximo?

 

Priscila Klein da Silva

Professora da Rede Municipal de Alvorada

Pedagoga – Orientadora Educacional / ULBRA

Especialista em Educação de Jovens e Adultos e Educação de Privados de Liberdade / UFRGS

Mestra em Educação / PUCRS



As manchas escarlates no corpo, especialmente aquelas no rosto da vítima, representavam a exclusão que a privava da assistência e da compaixão de seus semelhantes. [...] Apesar disso, o príncipe Próspero se sentia feliz, intrépido e sagaz (POE, 2018, p.15).


O trecho citado faz parte do conto de terror de Edgard Allan Poe, intitulado “A Máscara da Morte Rubra”, escrito em 1842. Pretendo aqui traçar um paralelo entre o conto anunciado e o contexto atual em que estamos vivenciando, com intuito de que possamos compreender algumas das consequências quando não encaramos a História e todas as suas ruínas (BENJAMIN, 2012).

Desde março, aqui no Brasil, temos nos deparado com uma Pandemia de proporção mundial e alto poder de contágio: a Covid-19. Não me aterei em explicá-la cientificamente, pois acredito que há muitas informações nos meios de comunicação, nacional e internacional, que mensuram como este vírus se comporta em nosso organismo, e/ou quais as precauções que devemos ter para não contrair esta doença (embora nem todos possuam condições para tal prevenção).

No conto de Allan Poe, uma peste também dizimava o país, e nenhuma como ela havia sido tão fatal. Era chamada de “Morte Rubra”, porque o “sangue representava a sua imagem e sua marca” (POE, 2018, p.15). Os sintomas eram caracterizados por dores agudas, tonturas, sangramento pelos poros, seguidos de deterioração (POE, 2018). No país, pouco foi feito para minimizar a peste que o assolava. No reino do príncipe Próspero não foi muito diferente.

Quando a população de seus domínios havia se reduzido à metade, ele reuniu mil amigos saudáveis e festivos, dentre cavalheiros e damas de sua corte, e com eles se recolheu em uma de suas abadias acasteladas (POE, 2018. p.15).


Assim como no reino do príncipe Próspero, desde que tivemos que reorganizar nossos modos de vida em razão da pandemia, presenciamos situações em que alguns que possuem certos privilégios, protegem somente aqueles que fazem parte de seu círculo. Mas, o que tem me intrigado, de modo a tirar meu sono em algumas circunstâncias, é como este mesmo comportamento opera em nós, classe trabalhadora. Chama-me atenção como este vírus tem agido em nosso emocional. Como a pandemia tem influenciado em nossa ética, em nossa noção de coletividade, em nossa capacidade de ressignificar modos de vida (ou em conservá-los).

No reino do príncipe Próspero, mais precisamente na abadia acastelada em que ele e seus convidados estavam confinados de tudo, inclusive da realidade, vivia-se num mundo paralelo, com muitos atrativos artísticos, musicais e tudo o mais que pudesse manter todos entretidos, para que o real não ocupasse suas memórias.

Walter Benjamin nos esclarece que “a verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento” (2012, p.07).

Nesse sentido, assim como no reino do príncipe Próspero, também vivemos um momento negacionista em relação a pandemia, onde uma parte da população faz questão de não tomar os cuidados necessários para evitar a contaminação pela covid-19. Prefere “viver a vida”, se reunir com familiares e amigos, não usar máscaras em nenhuma hipótese, ir a praia normalmente. Assim como o grande baile de máscaras organizado no reino de Próspero, onde todos os convidados, presos em seus delírios de superioridade, pensavam que estariam a salvo da Morte Rubra.

Mas, não são somente os negacionistas que têm este comportamento, muitas vezes incrédulo, outras vezes irresponsável. Parte da população, esta que se manifesta nas redes sociais, preocupada com a pandemia e com o comportamento das outras pessoas, frequentemente também não toma todos os cuidados necessários para proteger-se e proteger os seus. Há uma necessidade de manter aquilo que era cotidiano. Nas pequenas coisas, como fazer as compras no mercado (“ninguém compra o tomate do jeito que eu gosto”).

Percebo que, por um tempo, um véu encobriu o conservadorismo que habita em algumas pessoas. Com uma proporção micro, mas com significação semelhante ao conceito, conservadorismo aqui se refere ao fato de manter comportamentos e crenças que, de alguma forma, a situação atual nos mostra que há necessidade de desvendar. São valores que precisam ser repensados, para a preservação da vida humana. Mas há resistência, mesmo daqueles que se intitulam progressistas, ou que possuem uma visão mais à esquerda.

O baile de máscaras que ocorreu no reino de Próspero foi o maior que já aconteceu no local. Foi pensado com todo o cuidado para que não houvesse nenhuma tentativa de invasão de fora do palácio, em razão do risco de contágio. Edgard Allan Poe foi magistral na riqueza de detalhes sobre a festa e sobre o palácio. Tudo transcorria bem, todos se divertiam, até que ao soar as doze badaladas do relógio, surge um ser misterioso, mascarado. “A figura era alta e esquelética e estava coberta da cabeça aos pés com uma vestimenta mortuária” (POE, 2018, p.18). O príncipe Próspero, mesmo apresentando receio quanto a esta criatura, não podia deixar transparecer aos seus amigos e por isso, partiu para cima do estranho. O mascarado misterioso acabou com a vida de todos no palácio. “Agora a presença da Morte Rubra era reconhecida [...] E a escuridão, a decadência e a Morte Rubra reinaram com total domínio” (POE, 2018, p.19).

E quanto a nós, em 2020 d.C, será que conseguiremos encarar a história de frente, reconhecendo-a e “escovando-a a contrapelo” (BENJAMIN, 2012), superando comportamentos que só mantém o status quo e buscando outro modelo de sociedade? Ou deixaremos a Morte Rubra do progresso nos arrastar ladeira abaixo, assim como fez no reino de Próspero?


REFERÊNCIAS:


BENJAMIN, Walter. O anjo da História. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.


POE, Edgard Allan. A máscara da Morte Rubra. Tradução de Ana Karina Borges Braun. Caderno de Tradução, Porto Alegre, n.42 jan/jun, 2018.









quarta-feira, 8 de julho de 2020

O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS


Rafael Freitas - Educador popular, coordenador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata




Rafael Melo - Enfermeiro e Sanitarista











                      O CICLO DA PEQUENA POLÍTICA: O CASO DE ALVORADA-RS

             O que chamamos aqui de pequena política encontra as mais diversas definições, explicações e abordagens. Preferimos pensar a pequena política a partir da nossa realidade e do marxista italiano Antonio Gramsci, que enfrentava o fascismo primeiro, enquanto nós vivemos o avanço fascista no tempo presente. Chamamos de pequena política a forma como a política é conduzida em Alvorada, ou seja, ações que servem para manter as relações tradicionais entre governos e a classe trabalhadora, que nem sonham em colocar no horizonte a superação das classes, e o fim de um mundo com governantes e governados. Parece uma ingenuidade ter como objetivo um mundo novo, com novos valores e relações sociais. Mas a democracia representativa foi também algo impensável durante o Brasil escravista, quando os abolicionistas radicais eram “xingados” de comunistas. Independente do que o caro leitor ou a cara leitora pense lendo essas linhas, as relações sociais no Brasil irão mudar, como sempre se alteraram. E cada prática em sociedade participa dessa variação.


             Muitas pessoas têm chamado a pequena política de corrupção, de velha política, entre outros apelidos. Pra nós, essas palavras não têm dado conta da magnitude dos problemas que passamos. A abordagem a partir da “corrupção”, com muita frequência, se vale tão somente de aspecto como uma moralidade barata, quando não seletiva. Também pessoaliza esquemas de corrupção em supostos “políticos do mal”, excluindo da análise um sistema maior de beneficiamento. As mais fervorosas manifestações contra a corrupção, nos pareceram (talvez intencionalmente ou socialmente produzido) direcionadas somente aos “corruptos” (corrompidos) sem apontar os corruptores, no caso do congresso e do executivo nacional, grandes empresários que muito mais têm a lucrar que os próprios políticos “corruptos”.


              A leitura que trazemos aqui, é que esquemas de beneficiamento não dependem - somente - de “políticos corruptos”, mas estruturam todo um sistema, uma espécie de rito político brasileiro, que mais tem a ver com as regras do jogo, que com boa ou má intenção. As regras desse jogo não estão descoladas com a própria sociedade que as criou.

            O rito político brasileiro está estruturado em certa sociedade constituída historicamente. O Brasil é um país capitalista de economia dependente, com um Estado historicamente clientelista com o grande Capital e perverso com a classe trabalhadora. Chamamos atenção, para não pensarmos o Estado como algo inerte ao Capital, pelo contrário. Desta forma o que muito chama de “corrupção”, na verdade é a forma mais clássica de funcionamento desse modo de ser do Estado burguês.

         Preferimos, portanto, falar de um ciclo de pequena política, que se sustenta e não está descolado de nossa (des)organização social. Não basta tratarmos aqui de políticos bons ou malvados, mas de um sistema de dominação que favorece os mais ricos e penaliza de forma cruel os mais pobres.

          Para tornarmos o debate mais palpável, usaremos como exemplo a prática política de nossa cidade: Alvorada. Alvorada é uma cidade pequena o suficiente para expor com facilidade as práticas de pequena política e grande o suficiente para que essas práticas sejam substanciais à manutenção dos sistemas de poder. Mas afinal, o que é esse tal de ciclo da pequena política, em Alvorada?

          O ciclo da pequena política não tem um início. Se tem, nessa altura do campeonato já é difícil de saber onde inicia e onde termina. Mas tem um ponto forte, que estamos chamando aqui de “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação. Neste caso trata-se de ator com maior capacidade de atuação na arena política, diante dos outros atores aqui citados. Ele que faz a roda da pequena-política rodar.

           Acompanhando a imagem a baixo, iniciemos olhando para a classe trabalhadora em geral, que aqui chamaremos de população votante. Esta, analisa a situação de Alvorada, na posição de eleitor. Alguém que vota, esperando que a vida melhore, esperando retorno do Estado, escola, saúde, asfalto. Cria-se uma certa necessidade, uma demanda não assistida.

             O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, vê nessa demanda um nicho de ligação clientelista. Uma vez remediada, mesmo que deforma limitada, essa determinada necessidade, fica aberta a possibilidade de uma retribuição (voto, campanha...). O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, utiliza de dispositivos de clientelismo, visando ser alguém presente na vida do sujeito da população votante, esperando em troca a recompensa política. Os dispositivos de clientelismo podem ser os mais diversos que vão desde troca direta de comida por voto direto, passando por uma vaga de emprego, por camisetas para times de futebol locais, até um galeto com cerveja. Via de regra, esses dispositivos respondem às necessidades que deveriam ser sanadas com políticas públicas.


            Perceba que aqui está o combustível da pequena política. A falta de ação do Estado passa ser um projeto frutífero para a pequena política. A ausência de ações estruturadas, abre brechas para as necessidades da população e por consequência, para as janelas de oportunidade do clientelismo. Pensemos no caso das enchentes do bairro Americana ou Maria Regina. Vale mais (aqui ciente que não se trata de uma ação simples, mas que não se faz sem comprometimento político e projeto de transformação) enchentes constantes, gerando uma centena de necessidades (telhas, ajuda, roupas, uniformes de futebol ...), ou resolver de fato o problema das pessoas. Em outras palavras, o que dá mais poder: a dominação material e de consciência por parte dos representantes da burguesia ou um projeto de emancipação para os trabalhadores? A dominação gera manutenção de poder.


           Do outro lado, a população votante, aqui vítima de um processo histórico de dominação vê nos dispositivos de clientelismo - mesmo que as vezes com certa desconfiança- , alternativas viáveis de sanar suas demandas: “Aquele vereador é bom, ao menos ele se importa com nós, veio aqui no dia da enchente me entregar lona”. Note bem: o que claramente pode ser considerado como corrupção, na verdade acaba virando um modo de sobrevivência, por parte da população que pouca influência política, mas com uma quantidade enorme de demandas.

             Na outra ponta, encontra-se o empresário ou pessoa sem cargo político, com certa influência política, que não precisa ser alguém com grande capital acumulado, mas que possua certa capacidade de relacionamento com o “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação. Nesse caso, a relação não se estabelece da mesma forma do que com a população em geral. Ou achava que os dispositivos de clientelismo saíam do salário do vereador? Na verdade, o clientelismo é mantido com os recursos que podem ser recolhidos com mecanismos de influência, que podem ser ou propina direta, ou mesmo materiais que são repassados no clientelismo. A lona que vai para tapar o buraco da casa na enchente, pode ter sido doada pelo dono da casa de ferragens que quer algum beneficiamento político, e entregue pelo “político”, que reproduz a pequena política.

 
               Os beneficiamentos políticos, almejados pelo empresário ou pessoa sem cargo político, com certa influência política, podem ser os mais diversos. Desde influência política no cenário local, até mesmo recursos próprios de beneficiamento legal (colocar asfalto em frente a uma loja de ferragens...).

               O “político” com cargo eletivo ou de confiança, com poder de ação, que não respeitar a lógica da pequena política dificilmente terá êxito, justamente por se tratar de um ciclo fechado em que todas as partes são dependentes entre si. Obviamente, não tratamos de postulados universalizantes, mas de demarcações tradicionais de atores que frequentemente são vistos. Nem toda a população votante, há de se submeter ao ciclo da pequena-política, mas esse se faz tão presente, que dita de forma geral as regras do funcionamento político, e em especial, no nosso exemplo de Alvorada. Pois é muito fácil identificar aqui, monopólios de poder, indisponibilidade de renovação, e uma atuação política por parte da população geral muito dependente de clientelismos de ocasião. Também por isso, grande parte das propostas de suposta renovação política apresentadas, não passam de modernizações do velho ciclo da pequena política. Para mudar essa realidade, as eleições não resolvem. Pelo trabalho de base e ação política que motive a organização popular, desde os locais de trabalho, de estudo e de moradia. Estímulo a independência e respeito à classe trabalhadora, em suas organizações. Ampliação da política, para além das trocas de favores e das mentiras, para a criação de um novo poder, que repudie a pequena política




 

sábado, 6 de junho de 2020

Tristes constatações



Márcia Antunes
Artista visual, arte terapeuta, educadora e artesã, bordadeira, ex-punk, reikiana, atéia, motoqueira, viciada em livros, chá e filme francês







     Tem algo de muito grotesco nesta história da morte do pequeno Miguel que me assusta. A mãe decidiu falar da sua perda e denunciar o ocorrido, só depois de entender que não foi um simples equívoco.
    Ela fala de modo triste, óbvio, mas quase RESIGNADA. Como se a MORTE DE UM FILHO fosse sendo banalizada apenas pelo fato dele ser negro! E vamos nos consternando, vendo a foto de seu rostinho, criando hashtags de indignação, como se algo fosse nos livrar da dor.
    Não que o luto tenha um protocolo rígido a ser seguido, mas ao ver as notícias sobre este caso SURREAL (a empregada nem era deles, mas funcionária da prefeitura), a gente vai normalizando a estupidez que é a morte, nos ensinando que este mundo “doido” é assim mesmo.
     Mirtes, a mãe do menino, é apenas mais uma mãe que sente na carne sofrida, o NOJO e indiferença com que tratam empregados.
     Estavam todos infectados pelo covid e mesmo assim, não a dispensaram. Tinham 20 mil reais pra fiança, mas não a dispensaram.
   Esta maldita herança escravocrata normaliza as relações precárias de trabalho das empregadas (na maioria, negras). Desumanizando a PESSOA por trás da função. Então, seu filho era apenas um apêndice incômodo a ser tolerado; uma mancha de sangue no piso térreo, que quase nem se nota do alto das torres brancas.
    O mundo pandêmico não está pior. As pessoas apenas estão perdendo a vergonha de serem cretinas!