As pequenas mãos de Kerexu
Em uma manhã de sol, onde Ñamandú
iluminava a todos os mbyá, e com seus raios os aquecia, eu nasci. Filha de
Kuery e Varyjú, na terra de nossos ancestrais, Tekoá Koenjú. Meu nome é Kerexú,
nome dado para mim por Ñanderú Tupã, através de nosso karaí Tukumbo, e
significa “luz do luar”, na língua dos juruá.
Sei disso porque precisamos
aprender a língua deles, mas isso foi depois que saímos de Koenjú. Eu era
menor, mas lembro que minha avó, Ryapua, chamou meu pai bem cedo, antes de
tomarem cá’a, conversaram um pouco e saíram rápido, depois fiquei sabendo que
minha avô, cacique Jekupe, havia falecido.
Lembro que meu pai, meus tios e outros
homens da aldeia lamentavam muito a morte de meu avô, diziam que era um mbyá de
grande valor e sabedoria, que guiava o meu povo com justiça.
Dias ruins foram aqueles, muitas noites
ouvindo os cantos e ‘rezas’ vindas da opy. Acima de onde meu avô foi enterrado,
um grande monte foi construído um grande monte. Fiquei curiosa e perguntei para
meu pai o porque daquilo, e ele apenas disse que todas as coisas que o mbyá
precisa aprender virão aos poucos, aprendendo com os mais velhos e durante as meditações
na opy, e que meu avô era um mbyá de grande valor, que chegou muito perto do
modo de vida ideal. Eu não entendia bem essas coisas, ainda não entendo, mas
sei que o que disse meu pai era verdadeiro.
As orações pelo meu avô continuavam, assim
como nossa vida também seguia o curso normal. Em uma manhã, eu, minha mãe e
meus irmãos, fomos junto com outras mulheres vender coisas para os juruá, no
lugar onde eles chama de ‘ruínas’. Minha mãe levou cestas que ela mesmo fez, e
eu a ajudei a fazer, também levou bichinhos que meu pai fez e também colares.
Um
dia perguntei para meu pai como ele aprendeu
a fazer aqueles bichinhos, e ele me respondeu que, todas as coisas que
fazemos, seja as cestas, colares ou os próprios bichinhos, são talentos dados
ao mbyá por Ñanderú Tupã, pois ele sabia que, um dia a terra seria tomada pelos
juruá, e as matas cairiam, e os mbyá já não teriam muitas terras para plantar,
e o talento de fazer artesanatos, como chamam os juruá, seria o modo dos mbyá
conseguir sobreviver, ter comida para comer.
Em
koenjú plantamos milho, mandioca, mas nós precisamos vir sempre aqui para
vender. Não gosto muito, os juruá ficam nos olhando com muita curiosidade, como
se o mbyá fosse um bicho que eles nunca viram antes, algumas vezes nos dão
fruta, ou tiram fotos, mas não compram muito não, sempre voltamos com coisas
para casa que não foram compradas pelos juruá.
Minha mãe fica brava, porque eles vinham
ver as ruínas, que são terra de mbyá, mas não compram nada e nos olham com cara
de pena. “Não precisamos do dinheiro de vocês”, ouvi minha mãe falar para um
juruá, mas ele não entendeu, sorriu e tirou mais uma foto. Sempre quando
estávamos lá, minha mãe e minhas tias orientavam a nós, as crianças, a sempre
que um juruá passar por nós, deveríamos estender a mão. De início eu não
entendia o porque de fazer isso, mas nós fazíamos, e algumas vezes recebíamos
troquinhos deles, outras vezes eles nos davam comida, frutas, roupas e doces,
mas não eram sempre.
Tinha juruás que nos olhavam com cara de
mau, parecendo que tinham m’boguás nos seus olhos, prontos para saírem e nos
pegarem. Um dia, pela manhã, enquanto meu pai tomava cá’a com minha mãe e
fumava em seu petyguá, eu perguntei a ele o porquê que fazíamos aquilo, e ele
me explicou que, o poraró, nome em nossa língua para o que fazíamos, e que na
língua dos juruá significa ‘esperar com a mão’, é uma maneira que nosso pai,
nãnderú tupã, criou para que pudéssemos compartilhar com os juruá os mesmos
espaços, e que dessa maneira eles, ao doar algo para nós, como coração puro e
generoso, serão dignos que nãnderú tupã olhe por eles também. Desse em diante,
não mais questionei sobre o poraró, e sempre que saia para as ruínas com minha
mãe.
Os dias passavam em Koenjú, e eu e meus
irmãos sentíamos muita saudade de nosso avô, meu pai também sentia, ele não
falava, mas podíamos ver isso. Um dia ele ficou doente, não conseguia ir na
mata e nem na plantação; minha mãe chamou Karaí Tukumbo para ver meu pai e
leva-lo para a opy.
Quando ele melhorou e voltou para casa, olhou
para nós e disse que iríamos ir embora, era preciso caminhar para que não mais
sentíssemos saudade ou doença. No dia
seguinte estávamos a caminho de Porto Alegre, para uma aldeia chamada Tekoá Añenteguá,
onde um primo de meu pai era o cacique. Durante nossa viagem, nosso pai nos
falava que, para um mbyá ser saudável, e viver de acordo com nosso mbyá rekó,
era preciso andar, jeguatá, ficar muito tempo em um mesmo lugar não era bom.
Depois de dias de viagem, chegamos a Añenteguá.
Estranhei muito no início, pois havia muitos juruás perto da nossa aldeia, não
estava acostumada com isso em Koenjú. Depois que nos instalamos, minha mãe
passou a conversar com as mulheres, muitas delas suas amigas ou parentes
distantes. A aldeia era grande, não como Koenjú, mas tinha uma área de mata e
uma pequena plantação. Tinha também um açude onde tomávamos banho e uma escola,
onde aprendíamos a escrever em nossa língua, mas como os juruás escreviam.
Tinha também um posto de saúde, tinha medo de ir lá, pois lembro que mulheres
juruás vestidas de branco davam pic na gente e doía muito.
Com o tempo eu e meus irmãos fomos nos
acostumando com nossa nova aldeia, e nos divertíamos muito com as outras
crianças mbyá.
Um dia, minha mãe nos avisou que na manhã
seguinte íamos a um lugar chamado centro, onde venderíamos nossos artesanatos.
Vi que meu pai não gostou muito da ideia de minha mãe. No outro dia perguntei a
ela, então ela me respondeu que meu pai, assim como outros homens não gostam
muito que suas mulheres e filhos saiam assim, para vender e conseguir algum
troquinho, mas minha mãe disse que era
preciso, pois aqui em Añenteguá tínhamos o mesmo problema que em Koenjú, havia
pouca terra para plantar para todos nós.
Na chegada ao centro da cidade fiquei
assustada, meus olhos nunca haviam visto tantos juruás juntos, caminhando muito
rápido em ruas cercadas de casas muito altas, que eu não havia visto antes.
Minha mãe escolheu uma rua para ficarmos, próximo a uma praça com muitas
árvores, ela estendeu o pano, colocou o artesanato e ao lado deixou um potinho,
que eu sabia que era para que os juruá pudessem colocar troquinho para nós.
Muitas pessoas nem ao menos nos viam, quase
nos batiam em sua pressa, já outras nos olhavam com muita pena e com raiva para
nossa mãe, algumas até falavam coisas que a magoavam, mas minha mãe permanecia
ali.
Algumas
pessoas que passavam por nós tinham em seus olhares tão feios m’boguás
escondidos, assim como nas ruínas, parecendo que nós éramos coisas ruins que
ali estavam. E todas as vezes isso sempre acontecia, muitas pessoas passando,
mas poucas percebendo nossas mãos estendidas, esperando. Um dia, eu estava
triste, pois sentia que todos aqueles juruás não queriam que nós estivéssemos
ali.
Até
que uma senhora parou na nossa frente, nos olhou com um olhar que me lembrou
minha avó, se agachou na minha frente e me disse ‘Oi, tudo bem com você?’,
olhei para minha mãe e ela consentiu que eu respondesse, eu disse ‘sim’. Ela
pediu que estendesse a mão, eu estendi e ela disse: ‘Que mãos lindas e pequenas
você tem, acho que precisamos colocar algo em suas mãos.’, e ela começou a
colocar uma porção de moedas, balas, doces e deu para minha mãe uma sacola com
alimentos para nós.
Com
um sorriso ela se despediu e disse que viria nos ver outras vezes, e de fato
voltou, ficando amiga de minha mãe e da gente, sempre nos ajudando todas as
vezes que vinha. Passou a me chamar carinhosamente de ‘Kerexu mãos pequenas’,
por causa da primeira vez que ela falou conosco, pois não tive como segurar nas
mãos tudo o que ela nos deu naquele dia.
Essa senhora me fez olhar de outra maneira
para os juruás, sei que nem todos fazem como ela, mas sei que todos os que nos
ajudam como ela, como diz as palavras de meu pai: serão iluminados por Ñamandú e Ñanderú Tupã os dará força em suas vidas.
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