sábado, 8 de abril de 2017

13 reasons why (Netflix) - Uma perspectiva de gênero


Cristine Severo é Graduada e Mestre em Letras pela UFRGS e Graduanda em Ciências Sociais pela UFRGS e Professora da Rede Pública em Novo Hamburgo - RS

13 reasons why (Netflix) – Uma perspectiva de gênero

* Contém spoilers
* Aviso de gatilho: o texto contém relatos de violência física, psicológica e sexual (estupro).

13 reasons why é a mais nova série da Netflix, mas também é um livro escrito por Jay Asher. A série conta a história de Hannah Baker, uma adolescente que está no segundo ano do ensino médio. Desde o início da série, nós ficamos sabendo que Hannah se suicidou e a história é contada intercalando momentos do presente (pós suicídio) e do passado (antes do suicídio). Antes de cometer suicídio, Hannah grava 13 fitas explicando as 13 razões que levaram-na ao suicídio. A série conta com uma narradora, Hannah Baker, que narra através das fitas, e um personagem principal, Clay Jensen, o número 11 das fitas.
A série abre margens para infinitas discussões: bullying, suicídio, depressão, o sistema escolar, adolescência, etc., mas também é possível fazer uma leitura de gênero, pois muitas das coisas que Hannah relata ao longo das 13 fitas ocorreram com ela apenas pelo fato de ela ser uma garota. Já na primeira fita Hannah nos conta como tudo começou: em um encontro com um garoto (Justin). Eles estão em um parque e ele tira uma foto dela descendo do escorregador. No dia seguinte, ele mostra a foto aos amigos, dando a entender que ele e Hannah teriam feito mais do que apenas se beijado. Um dos amigos espalha a foto para toda a escola e Hannah passa a ser a “vadia” da escola. Uma das lembranças mais especiais de sua vida – o primeiro beijo – fora arruinada no dia seguinte. Este fato representa a diferença entre a vida sexual masculina e feminina em nossa sociedade. Ambos estavam no parque, ambos fizeram as mesmas coisas, mas apenas um lado é julgado e condenado: a garota.
A sexualidade feminina é controlada desde sempre, enquanto a masculina usufrui de todas as liberdades possíveis. Na adolescência isso é muito latente. Garotos não são julgados quando utilizam desta liberdade. Enquanto garotas, se fizerem exatamente o mesmo que um garoto já fez tantas vezes, terá sua vida sexual controlada, julgada, apontada e surrupiada pelos demais. Será motivo de humilhação, piadas, xingamentos. Será a “vadia” da turma. A fácil. Por que essa diferença de tratamento para homens e mulheres? Por causa do patriarcado e da cultura machista de nossa sociedade que não enxerga na mulher um sujeito com desejos e vontades, mas sim um objeto a serviço do prazer masculino. À mulher a clausura, ao homem o mundo. Quanto mais uma mulher expõe sua sexualidade, mais abjeta ela se torna. Essa dupla moral ainda é sustentada hoje, na criação dos filhos. Meninos são criados para atacar, meninas para se defender, como se a arena sexual fosse uma luta, onde o homem que abater mais mulheres sai campeão e todas as mulheres perdem. O próprio ato sexual ainda é visto como uma batalha: um dominador e uma dominada. Garotos ainda se vangloriam quando conseguem transar com uma garota! Eles não pensam que esta garota também estava com vontade de transar com ele, garotos pensam que eles a “conquistaram” ou a “seduziram” e isso é motivo de comemoração. O sexo não é visto como um momento a dois, como uma relação horizontal de troca.
O que é preciso, em primeiro lugar, é melhorar a educação de nossos meninos. Educá-los para reconhecer nas mulheres um sujeito pensante e desejante, um ser humano ao qual devemos cuidar. Quantos de vocês se identificaram com Justin durante a série? Este é o primeiro aviso de que é hora de mudar sua postura em relação às mulheres.
Um segundo momento da série ocorre quando Alex faz uma lista das melhores e piores da escola. Hannah venceu a lista como melhor bunda. Como ela própria afirma na série: isso a tornou um alvo para os demais garotos. Ela passa a sofrer assédios nos corredores. Um dos personagens, Bryce, apalpa sua bunda e faz comentários obscenos para ela. Aqui fica expresso o quanto a objetificação do corpo feminino já está completamente internalizada na adolescência. As garotas da escola foram avaliadas, julgadas pelos garotos e receberam notas de acordo com seus atributos físicos. Nem o personagem de Clay, que é diferente dos outros garotos, conseguiu entender o por quê de Hannah ter ficado chateada com aquilo, afinal, segundo ele, era até um elogio. Garotos não entenderam que Hannah se sentiu como um objeto leiloado com essa lista. Ela perdeu sua humanidade e se tornou apenas seu corpo.
Garotos objetificam garotas o tempo todo. Grande parte disso eles aprendem com a mídia, que já realiza esse serviço há décadas. Propagandas de cerveja com mulheres seminuas, de lingerie, marcas de roupas e até de móveis que utilizam o corpo da mulher para vender, programas como Pânico que também se utilizam dos corpos das mulheres para terem mais audiência, ensinam aos meninos que mulheres são seres sem humanidade, são apenas corpos para servir-lhes. Esse aprendizado se reflete no dia a dia, através de uma lista das melhores e piores, por exemplo. Lista que já deve ter sido feita em várias escolas. Na minha foi. Mas também se reflete em momentos como um assobio de rua, um “gostosa” gritado de longe, uma frase obscena dita ao ouvido, uma passada de mão no corpo alheio, um toque ou um aperto onde não devia.
O terceiro momento que devemos comentar é o caso de Jess. Ela é a líder de torcidas e namora com Justin. Jess faz uma festa em sua casa e convida todos os colegas. Ela bebe demais, vai para o quarto com Justin, dorme e acontece com ela o mesmo que acontece com inúmeras garotas em festas: é estuprada. Mas quem a estupra é Bryce que diz para Justin: o que é meu é seu – novamente objetificando o corpo feminino como coisa a servir ao prazer masculino. É necessário dizer que fazer sexo com uma mulher inconsciente é estupro? Sim, é necessário. Bom, então: homens, fazer sexo com uma mulher muito bêbada ou inconsciente é estupro. Se você homem alguma vez já fez isso, você estuprou uma mulher. É isso que ocorre com Jess na série. Hannah está no quarto e assiste tudo. No outro dia Jess não lembra de nada e trata Bryce como um amigo. Os únicos que sabem são Justin, que não ajudou a namorada quando ela precisou, e Hannah. Ela decide contar o estupro nas fitas. Todos negam e dizem que não é verdade.
O corpo feminino é usado constantemente como objeto do prazer masculino na série. Os três casos citados até agora são um exemplo disso. O quarto caso mostra o resultado desses pequenos casos que vão criando grandes traumas. Hannah começa a se interessar por Clay. Os dois têm um momento íntimo durante uma festa, começam a se beijar, ele pergunta se está tudo bem para ela (legal, né, consentimento importa). Até que todos os assédios sofridos, todas as humilhações, os abusos, as violências físicas e simbólicas vividas começam a voltar em sua cabeça e no meio do romance todos os homens que já fizeram mal a ela se tornaram Clay. Ela não consegue continuar, aquela intimidade a faz lembrar do passado e ela o interrompe com uma crise de raiva e choro. Os traumas que foram se construindo até aqui finalmente apareceram. A garota está muito machucada. O machismo traumatiza, o machismo maltrata, o machismo mata. Hannah se suicidou por causa do machismo sofrido diariamente. Ter seu corpo objetificado, tornado um alvo, apontado, julgado, humilhado, acabaram matando-o.
O maschismo que matou seu corpo foi o mesmo que matou sua alma. E chegamos ao quinto e mais pesado momento da série. Hannah é estuprada por Bryce. Aqui temos uma discussão sobre consentimento. Os dois estão na hidromassagem, Bryce começa a se aproximar de Hannah, a tocá-la, que fica visivelmente incomodada com a invasão de Bryce. Este apenas afirma que eles estão se divertindo, que está tudo bem. Ela tenta recuar, não consegue, pois ele utiliza sua força para segurá-la. Hannah não sabe como reagir nessa hora. Ela não quer aquilo, mas não diz isso em palavras. Bryce força toda a situação, manipulando-a e pressionando-a a fazer sexo com ele. Mesmo Hannah não dizendo em palavras que não queria aquilo, era visível pelo seu recuo. Bryce não se importou com a vontade dela e impôs a sua vontade.
Mesmo quando uma garota não diz “não” isso não pressupõe que ela quer fazer sexo. O consentimento precisa estar explícito verbalmente e por gestos de aceitação da carícia. É muito comum homens forçarem sexo e as garotas acabarem cedendo por pressão. Eu arriscaria dizer que todas as mulheres já passaram por isso. Em uma cena seguinte, Clay confronta Bryce em relação a isso e ele nega, afirma que Hannah estava “implorando” para que ele fizesse sexo com ela. Disse que garotas são assim, fingem que não querem, mas no fundo querem. Ou seja, Bryce não cogitou que Hannah não queria fazer sexo e que ele estava a estuprando. Quantas vezes as mulheres terão que passar por isso até que homens entendam que Não significa mesmo Não? Quando homens vão começar a se preocupar com o consentimento da mulher? Quando uma mulher não terá sido forçada a fazer sexo por pressão masculina? Por que os homens se acham no direito de forçar sexo? Novamente, toda uma cultura machista que ensina homens erradamente.
Enquanto eu assistia a série, reconheci minha adolescência em vários momentos. Os julgamentos dos corpos, o controle da minha sexualidade, da sexualidade das minhas amigas, o nosso caráter ser definido pelo número de homens que nós beijamos, as passadas de mãos, os assédios, os abusos, as violências simbólicas que afetam nosso psicológico e nos deixam traumatizadas, os medos, a fobia de ser chamada de “vadia”, o receio de sair com um garoto e ser chamada de fácil.
É possível nos perguntarmos quantas vezes nós, eu, você, já agimos dessas formas com as pessoas. Quantas vezes eu, você, já tivemos estas mesmas atitudes machistas em nossas relações. Quantas vezes já objetificamos o corpo feminino, quantas vezes ele já foi usado para seu divertimento, para seu prazer, nem que seja o prazer de rir desse corpo humilhado. Quantas vezes elegemos a mais gostosa. Quantas vezes vimos nossos amigos estuprando mulheres inconscientes e bêbadas e não fizemos nada.

  Por causa dessa leitura de gênero a série me mostra que Hannah não teria se suicidado se ela não fosse mulher. As violências que ocorreram com ela não teriam ocorrido se ela não fosse mulher. Mataram seu corpo e por último sua alma. Quantas de nós andamos mortas pelas ruas devido às violências sofridas?  

Nenhum comentário:

Postar um comentário